sábado, 10 de setembro de 2016

Provocador, “AQUARIUS” escancara Brasil atual de forma brilhante

Clara tem 65 anos e está aposentada. Viúva, vive confortavelmente à beira do mar em Recife, em um apartamento no qual ela mora desde que se entende por gente. Seu lar tem grandes histórias familiares, inclusive dela mesma: ali ela venceu um câncer de mama, que lhe deixou sequelas, e criou seus três filhos. Porém, o prédio onde ela mora foi quase todo comprado por uma construtora, que quer derrubá-lo para construir algo moderno no lugar. E se diz “quase”, porque Clara resiste e não entrega o seu apartamento – o seu santuário de memórias – para uma empresa que quer desaparecer com toda a sua história.

Esse é o plot visível de Aquarius, segundo filme dirigido por Kleber Mendonça Filho.

É raro quando o público aplaude o filme durante os créditos finais. O ato de se manifestar ao término da sessão é pouco comum, ainda mais se tratando de que a audiência é composta de pessoas que podem gostar do que assistiram, enquanto outros podem odiar do fundo da alma, até vaiar. Mas na sessão de Aquarius acompanhada em um cinema na Avenida Paulista, o público todo aplaudiu – alguns de pé. Isso demonstra o quanto o filme toca profundamente o espectador: não só pelo fato de ser um longa que fala sobre a importância de se preservar a memória, mas também de lutar por ela contra forças maiores, poderosas, que insistem em tentar corromper o homem comum.

E é óbvio que isso encontra eco no nosso momento atual. A luta de Clara para preservar seu lar apesar das pressões de amigos, ex-vizinhos e parentes é a luta por um ideal. Sua briga com a construtora Bonfim, na pessoa de Diego – papel de Humberto Carrão – é o Davi x Golias, o pequeno contra o gigante, as forças conservadoras quatrocentonas milionárias contra uma pessoa comum, que só quer ter paz no seu canto. O encanto do filme está aí, em pegar um recorte aparentemente tão banal e transformar numa poderosa metáfora sobre o que é o Brasil em 2016.

Tudo isso não seria possível sem a presença arrasadora de Sonia Braga. Ela surge em praticamente todas as cenas das duas horas e vinte e cinco minutos do filme. E com coragem: mostra-se sem maquiagem, em momentos de alto teor sexual, despida de qualquer vaidade para compor um personagem muito próximo de nós. Sua simpatia e carisma iluminam cada frame, e é por isso que ela vem sendo cotada aos grandes prêmios do cinema para o próximo ano: sem ela, Aquarius não teria metade da força que possui. Isso fica claro em seu confronto com Diego, quando finalmente a máscara de cordialidade cai e ambos demonstram o que sentem um pelo outro. E nas cenas aparentemente banais – como uma reunião de família que vira uma amarga discussão – é que Braga mostra como ela faz falta ao cinema brasileiro.

Também é preciso notar que o elenco coadjuvante – destaque para Irandhir Santos e Humberto Carrão, comprovando que são grandes atores – mostra-se afiado e compreendendo seus personagens, dando vida a eles de forma convincente. E a trilha sonora é um caso à parte: de Reginaldo Rossi a Queen, passando por Roberto Carlos e Heitor Villa-Lobos, é quase um personagem da história.

E esses méritos recaem sobre Kleber Mendonça Filho, um dos mais prestigiados críticos de cinema brasileiro. Ao passar para a produção de longas, trouxe tanta bagagem que ele parece ter anos de experiência na função. A construção da tensão, tanto psicológica quanto sexual, pulsa em Aquarius. O roteiro, também escrito por ele, é cheio de metáforas sobre o Brasil e sua sociedade, que são facilmente reconhecíveis na terceira parte do filme. São méritos que o colocam como um dos grandes realizadores da atualidade.

Evidentemente, o teor de Aquarius não agrada a setores politicamente de direita, por conta do seu conteúdo libertário e contra as grandes corporações, tanto é que assisti-lo virou uma guerra ideológica. O longa transcende qualquer posição política, é bom cinema, com uma história emocionante e de qualidade. Apesar desse enrosco politizado, todos deveriam ver o filme nem que seja para admirar a beleza e garra de Sonia Braga, no que é provavelmente o melhor papel de sua carreira. E convenhamos: quem se ofende com o tema demonstra merecer ser retratado nele como vilão.


E claro, houve gritos de “Fora Temer” ao fim da sessão. É um bom sinal.