sábado, 3 de setembro de 2016

Crítica | “Glory”, de Britney Spears

Britney Spears está de volta. A questionável apresentação realizada nos palcos da Billboard em maio deste ano demonstrou que ela quer, mais uma vez, se restabelecer. Depois do colapso psicológico e midiático em 2009, a artista da música tentou emplacar um trabalho substancial, mas a realidade não foi nada agradável: Circus possuía algumas faixas empolgantes, mas nada radiante a ponto de colocá-la de volta ao posto de princesa pop milagrosamente alcançado desde o seu surgimento em 1999, com o bonitinho, mas ordinário, Baby One More Time, um sopro de frescor no mundo pop juvenil, haja vista a necessidade de uma nova personalidade para representar os anseios do público adolescente, afinal, Madonna já havia deixado essa imagem nos porões dos anos 1980 e continuava a apostar na postura adulta com o premiado Ray of Light.

Circus não foi ofensivo, mas na seara da cultura pop não fez nada além de repetir fórmulas. Como peça da cultura pop, os produtores deveriam saber que um dos “mandamentos teóricos” desta modalidade de arte é o clamor por novidades, pois o público consumidor descarta os seus respectivos produtos na mesma velocidade que os adquire. Britney Spears, acomodada, não quis saber disso e se fez de rogada, entregando ao público o mais do mesmo, postura que se tornou ainda pior nas bobagens seguintes: Femme Fatalle e Britney Jean. Mais genéricos do que qualquer outro trabalho da artista, algumas canções como Work Bitch e Till The World Ends até soaram divertidas e dançantes, mas a carreira da musa pop parecia seguir o caminho que esperávamos desde que ela apareceu em cena pela primeira vez: ladeira abaixo, afinal, como definir Britney Spears, uma cantora que desafina até quando canta “parabéns pra você”?

Desta vez, entretanto, Britney decantou um pouco mais as suas ideias e criou um estratagema para revolucionar no campo da música contemporânea. Envolveu 40 colaboradores, entre produtores e compositores, assinou mais canções que o habitual e o resultado é Glory, seu nono álbum de estúdio, um trabalho diferente do que a artista realizou nos últimos anos, contendo 17 faixas e financiado pela RCA Records, a sua “casa” atual. Em termos instrumentais, a produção traz alguns bons momentos, mas no que tange aos aspectos vocais, a limpeza não é oriunda de novas estratégias da artista ou de um novo método revolucionário de canto: Britney Spears está, mais do que nunca, assessorada pelos sintetizadores, ou seja, como apontado por parte da crítica estrangeira, continua linda e genérica como sempre.

No que diz respeito ao numeroso grupo de pessoas envolvidas na concepção do álbum, seria leviano apontar o dedo para Britney Spears, julgando-a, afinal, as artistas do pop são extremamente produzidas. O que dizer de Beyoncé e as 70 pessoas envolvidas na concepção das 12 faixas de Lemonade? E Rihanna e seu ANTI, com 16 faixas e 60 profissionais relacionados com a produção? O que diferencia, por sua vez, as comparações, é a qualidade vocal das cantoras citadas, diferente da musa pop de 34 anos que nasceu em Louisiana, ingressou no clube do Mickey, namorou o Justin Timberlake, tornou-se uma das artistas mais rentáveis da indústria fonográfica contemporânea, batizou-se nos palcos ao cantar com as lendas Michael Jackson e Madonna, além de ter ganhado vários (equivocados) prêmios nos últimos vinte anos de cerimônias organizadas pela MTV e afins.

Com maior talento para ser vendedora dos seus perfumes, musicalmente, Britney Spears é soubrette, ou seja, possui alcance vocal de três oitavas e duas notas, o que torna a sua experiência neste novo álbum (e em toda a sua carreira) limitada. Mas, afinal, caro leitor, o que isso tem a ver com a análise crítica? Continue lendo e perceberá que isto é apenas a ponta do iceberg.

Com 41 minutos e 26 segundos de duração, o álbum é o que o The New York Times equilibradamente chamou de um trabalho com vocais mais envolvidos e presentes, diferente das últimas incursões da artista. Essa afirmação, no entanto, não garante que o resultado é primoroso. No final das contas, Britney Spears merece o nosso aperto de mão pelo esforço, afinal, as mensagens cotidianas e altruístas que recebemos pelas redes sociais e em programas televisivos como o de Ana Maria Braga não dizem que devemos continuar tentando, mesmo que não dê certo? Isso é até nome de filme, ora bolas, deve ser algo a ser levado em consideração.

Em Glory, quase todas as faixas gravitam em torno de uma temática insistente na vida artística da balzaquiana: sexo. Britney Spears, simulacro de Madonna, não se demonstra forte como a sua fonte de imitação. Os sussurros e gemidos de sempre, a voz grave e a postura nasalizada não incomodam aos acostumados ao seu trabalho, entretanto, Britney Spears erra muito feio ao tentar exagerar em algumas faixas, numa busca por um tom de voz que ela sabe ser incapaz de alcançar. Se estivéssemos nos tempos de Slave 4 U e Toxic seria até compreensível, pois quem se importa com a letra e a falta de talento vocal diante destas duas preciosidades rítmicas? No entanto, estamos falando de uma “nova” fase e das novas apostas.

A produtora Karen Kwak assinou a produção geral. Antenada, trouxe nomes como Justin Trater e Julia Michaels para compor material que encaixasse Britney na dinâmica contemporânea. Conhecida por já ter produzido Rihanna e Justin Bieber, Kwak refrescou o álbum da sua atual contratante. Dentro da realidade de Britney, Glory é razoavelmente bem sucedido. Dentre as tantas referências rítmicas do álbum temos o R&B contemporâneo, o hip hop e o pop alternativo, o que nos leva a um breve panorama dos principais destaques.

Invitation é a faixa de abertura: produzida por Nick Monson, é trabalhada na esteira do pop alternativo, com direito aos falsetes, e ar de sedução e melancolia por parte da interprete. “Aqui está o meu convite, espero que nos liberte e que nos ajude a nos conhecermos melhor”. Estaria Britney dialogando com o seu novo público? Vai saber! O ouvinte é convidado a ficar por dentro das emoções, tal como a traição em Just Like Me e a necessidade de fazer sexo deitado, sem barulho, como solicitado na descartável Love me Down. A eufórica Do You Wanna Cover Me?, produzida por Mattman e Robin, autorreferencia outras faixas da artista, tais como Toxic e I´ve Just Begun (Having My Fun). A canção sexy flerta com o chamado de Britney para um cara que supostamente teve um dia ruim, convidando-o para dar uma passada em sua casa.

Make Me, produzida pelo europeu Burns, traz batidas num segmento house, com leves puxadas para o indie. Private Show é um dos itens pecaminosos da lista. “Me observe deslizar e rebolar”, diz a canção. Ao escutar, a impressão é que estamos diante de uma nova versão da empolgante Gimme More, faixa do interessante Blackout. A resposta, entretanto, é negativa. Bastam alguns segundos para percebermos que a artista força demais a barra, na tentativa de alcançar o tom desejado, esquecendo-se das suas possibilidades. O mesmo erro ocorre em What You Need: ao tentar causar boa impressão na busca por inspirações nos anos 1960, Britney exala boa vontade, mas como diz o ditado, o “inferno pop” está cheio de boas intenções. O parco alcance vocal a impede de dar conta da gritaria da faixa, uma composição que pede uma voz mais intensa e menos forçada.

Em Coupure Electrique, Britney Spears referencia o álbum Blackout. A faixa faz bom uso do baixo, mas por ser cantada em francês, a sensação é a pior possível. O sotaque é incomodo, soando como aquela canção que deveria ter entrado apenas na versão “deluxe” do álbum. Em suma, Glory demarca o retorno da artista após o hiato de dois anos em regime pop “semi-aberto”, alternado por mergulhos reflexivos em torno da sua própria “arte” e pequenas aparições em eventos da indústria cultural.

A sugestão, se me permitem, talvez seja bem coerente. Se for continuar a insistir na música, Britney deve dar vazão aos seus sentimentos e trilhar o caminho de Glory, inovando de maneira geral. Se a musa por acaso tentar desistir, acredito que uma boa fatia do campo da música agradecerá, pois a artista como cantora já provou ser uma ótima dançarina. E como dançarina, diferente dos tempos áureos (1999-2006), Britney provou ser uma ótima pessoa. Tudo isso já é o bastante. Ficaria ainda melhor se ao trilhar a última opção, ela também levasse a trilogia genérica composta por Ariana Grande, Lana Del Rey e Miley Cyrus.

Ao tentar se levar a sério, Britney Spears não conquistou os devidos créditos da sua jornada. O seu primeiro single é prova disso. Em Make Me, faixa que ganhou videoclipe antes do lançamento oficial do álbum, Spears sensualiza diante da câmera e simula cenas tórridas de sexo com um dançarino. A sensação é a de sempre: sentimos que isso tudo já foi visto antes. Ela nem é culpada: o seu público insistente é que não permite que ela tente fazer algo realmente diferente. O seu público, por sua vez, também não é culpado, pois os limites artísticos de Britney Spears são muito bem delineados, o que não a permite ir muito além.

Diante do exposto, nos encontramos num paradoxo, um termo que talvez defina de maneira bem elucidativa quem é Britney na seara do pop e da indústria cultural contemporânea. O leitor, bem como os fãs e os haters da artista, talvez nem liguem para tamanha complexidade, afinal, Britney Spears importa?

Aumenta: Make Me.
Diminui: Private Show.

Glory
Artista: Britney Spears.
País: Estados Unidos.