Estilo
é o que não falta para este The
Dressmaker. Antes mesmo do primeiro traje vestido por Kate Winslet aparecer em cena – e são muitos figurinos em jogo aqui
-, a trilha sonora, a direção de fotografia e as escolhas da diretora Jocelyn Moorhouse já mostram que este
filme tem um DNA importante. Do início ao fim Moorhouse faz boas e planejadas
escolhas. Todo elemento e palavra tem uma finalidade. Nada é jogado ao vento.
Um filme bem diferente sobre a busca da verdade e por vingança. Divertido,
apesar de que, claro, ele não chega a reinventar nenhum gênero.
A HISTÓRIA: Trilha sonora ao estilo western. Um ônibus cruza uma
estrada rodeada de campos. Uma menina brinca. Uma mulher olha séria para trás.
Um menino está caído no chão com sangue na testa. A mesma menina de antes grita
em um carro. Várias cenas antigas se repetem mostrando aquelas crianças, mas
sem uma sequência bem definida. O ônibus chega à noite em uma pequena cidade e
desce dele uma mulher muito bem vestida. Ela deixa uma máquina Singer no chão,
pega um cigarro, olha ao redor e fala: “Voltei,
desgraçados”. Esta é a história de redescoberta de Myrtle Dunnage, ou
apenas Tilly (Kate Winslet), como
ela gosta de ser chamada.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER –
aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes
do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a The Dressmaker): Tenho um fraco por
filmes que tem um estilo bem definido. Acho que isso faz falta no cinema.
Aprecio, pois, quando a identidade de uma produção é clara, tem um propósito e
um estilo artístico que diferencia ela de todas as demais. E isso é algo muito
evidente em The Dressmaker.
Claro
que apenas o estilo artístico e a identidade planejada pelo realizador(a) não
basta. O roteiro tem que ser competente, assim como o trabalho dos atores tem
que convencer. Pois bem, acho que tudo isso está presente em The Dressmaker. Depois vamos falar
sobre a mensagem e a essência da história, mas antes vou falar sobre o que me
impressionou mais nesta produção.
A
sequência inicial deste filme é mais do que um belo cartão de visitas. Ela
revela muito do estilo da diretora Jocelyn
Moorhouse e do tipo de produção que teremos pela frente. Trilha sonora
marcante, direção de fotografia perfeita e uma edição ágil e bem precisa. Cada
ângulo da sequência inicial, cada cena apresentada, tem um propósito. Não há
sobras na narrativa, seja no que vemos ou no que ouvimos. Isso é algo raro no
cinema comercial atualmente, tão cheio, muitas vezes, de efeitos especiais e de
pouca valorização do conjunto de qualidades que faz o cinema ser a Sétima Arte.
Achei,
pois, a sequência inicial de The
Dressmaker perfeita. Em pouco tempo vamos descobrir que esta produção com
roteiro de Moorhouse e P.J. Hogan,
baseada no livro de Rosalie Ham, é
uma espécie de “comédia de costumes”,
ou seja, uma leitura ácida e um tanto irônica/macabra de uma comunidade do
interior da Austrália – mas que, certamente, poderia ser ambientada no interior
de diversos países. Sendo assim, não teremos um ritmo frenético, muita ação ou
suspense. Claro que há ação e um toque de suspense, mas estes não são os
elementos principais da trama.
O
que mais interessa em The Dressmaker
é o raio-x daquela comunidade de Dungatar no início dos anos 1950 – o filme se
passa na pequena cidade australiana em 1951. Neste filme, a exemplo de outros
que se debruçam no estilo de vida de um pequeno grupo social, o que importa são
as relações humanas e o perfil dos personagens. Neste sentido, o roteiro de
Moorhouse e Hogan gasta o tempo exato para aproximar-se de cada personagem –
especialmente do núcleo central da trama.
É
fundamental para a trama e para o envolvimento do espectador com a protagonista
conhecer pouco a pouco as suas motivações, dúvidas e sentimentos. O roteiro
acerta ao ir desbravando o mistério do “crime”
que teria sido praticado por Tilly pouco a pouco. Afinal, o suspense sempre
ajuda a manter a atenção na trama e na história que está sendo contada.
Enquanto acompanhamos a protagonista em sua “busca pela verdade” – algo que, naturalmente, sempre vai ter
potência no cinema -, também conhecemos melhor aquela pequena comunidade
australiana, seus costumes e valores (ou a falta deles).
Além
da trilha sonora, da direção da fotografia, do roteiro e do trabalho competente
dos atores, outro elemento tem um papel-chave nesta produção: os figurinos. Nem
teria como ser diferente já que a protagonista ganha a vida como estilista. As
roupas que Tilly produz mudam a rotina da comunidade e, com isso, ela consegue
avançar em seu propósito de dar uma qualidade de vida melhor para a mãe, Molly
(a ótima Judy Davis), e descobrir o
que realmente aconteceu em seu próprio passado.
Comentado
os pontos de destaque do filme e o que mais me chamou a atenção nele, falemos
sobre a essência da história e o que ela nos diz. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme ainda). Para
começar, aparentemente, a protagonista tem três motivações centrais: conhecer a
verdade sobre o próprio passado, reencontrar e resgatar os laços com a mãe e,
se ela tiver confirmada a teoria de que foi injustiçada por aquela comunidade,
vingar-se deles. Mas, como na vida real, nem sempre as intenções iniciais são
plasmadas. A razão principal para isso é que a vida é dinâmica e sempre
acontecem surpresas além dos nossos planos iniciais – por isso muitos planos
são vãos.
No
caso de Tilly, não apenas ela demora bastante tempo para roçar a verdade sobre
o que aconteceu com ela quando era criança, como ela descobre que tem um pai
bem diferente do que imaginava, perde alguém fundamental e é surpreendida pelas
investidas de Teddy McSwiney (Liam
Hemsworth). Isso não a impede de realizar o que tinha planejado desde o
princípio, mas sem dúvida alguma restringe as suas escolhas e possibilidades.
Alguns
podem não gostar, exatamente, da parte final do filme. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Mas The Dressmaker não se preocupa com finais felizes. Quem assiste Game of Thrones ou The Walking Dead sabe que está na moda histórias um bocado
realistas e com mortes importantes – inclusive de personagens centrais. Isso
acontece com The Dressmaker. Tilly
acredita que é amaldiçoada – uma bobagem, evidentemente. Mas, de fato ela não
tem muita sorte nesta produção. Bem, esta é uma forma de encarar o que acontece
com ela. Eu já vejo de outra forma.
Quando
retorna para Dungatar 25 anos depois da morte de Stewart Pettyman (Rory Potter), Tilly tem a sorte de
resgatar a dignidade da própria mãe, uma mulher abandonada e que provavelmente
só não tinha morrido devido à ajuda de um pequeno grupo de pessoas. Sozinha em
uma casa cheia de lixo e de dejetos, Molly volta a ter uma casa decente e,
pouco a pouco, a conviver em sociedade, não apenas lembrando de fatos
esquecidos, mas ajudando a filha a entender a própria história. Apenas por
fazer isso Tilly já deveria se sentir muito feliz e honrada. No fim das contas
ela conseguiu fazer isso pela mãe dela e ainda conviver com Molly por algum
tempo.
Além
disso, ao voltar para aquela pequena cidade que a expulsou quando ainda era
criança, Tilly retorna o contato com Teddy, um partido incrível que,
inacreditavelmente, seguia solteiro.😉
Mesmo que ele não tem um final feliz, Tilly consegue fazê-lo feliz por um pouco
de tempo – e ela também sente o gostinho bom do amor. Como diria o mestre Vinicius de Moraes em seu Soneto de Fidelidade, “eu possa me dizer do amor (que tive):/ que
não seja imortal, posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure”.
Agora,
se Tilly fez diferença na vida daquelas duas pessoas positivamente, ela também
infligiu naquela pequena comunidade de invejosos, caluniosos, mesquinhos,
hipócritas e traidores uma vingança dura. Desta forma ela foi a algoz de
pessoas boas e ruins – talvez uma “moral
da história” seja que planos de vingança tem este efeito devastador,
atingindo quem “merece” e quem é
inocente.
Afinal,
se Gertrude “Trudy” Pratt (Sarah Snook),
Elsbeth (Caroline Goodall, que
interpreta a mãe de William), Beulah Harridiene (Kerry Fox, professora de Tilly quando ela era criança), Muriel
Pratt (Rebecca Gibney), Percival
Almanac (Barry Otto), Evan Pettyman
(Shane Bourne) e outros da
comunidade até mereciam sofrer um pouco na pele pelos seus próprios pecados, o
mesmo dificilmente podemos dizer dos personagens de Marigold Pettyman (Alison Whyte), Irma Almanac (Julia Blake, aparentemente a única
amiga de Molly na cidade) ou do sargento Farrat (Hugo Weaving). Dois deles sofrem finais que não são bacanas antes
do “grand finale”. Mas é assim que as
coisas são, nem sempre os bons tem o final que eles merecem.
Enfim,
acho que este filme tem muito mais acertos do que erros. A crônica de uma
comunidade corrompida acho que pode fazer as pessoas refletirem, além da
diversão propriamente dita que um filme com estilo proporciona. Mas para não
dizer que tudo são flores, acho que o roteiro exagerou a tinta em alguns
personagens, tornando eles um pouco caricatos demais – o maior exemplo, para
mim, é do sargento Farrat. Dá para entender a escolha, já que personagens
caricatos são mais fáceis de fazer rir. Mas acho que o filme poderia ser ainda
melhor se tivesse personagens que fugissem deste caminho e que fossem um pouco
mais “complexos”. Ainda assim, nada
que desmereça o conjunto da obra de The
Dressmaker.
NOTA: 9.