Rita Lee tinha seis anos quando perdeu a virgindade com chave de
fenda criminosamente manipulada pelo técnico que viera consertar a máquina de
costura da mãe da então menina paulistana. Bastou uma distração da mãe para que
a garota fosse sexualmente abusada. Dramático, o episódio é revelado por Rita
nas páginas 13 e 14 da autobiografia lançada neste mês de novembro pela editora
Globo Livros. Tão ou mais traumático na vida de Rita quanto a saída do grupo Os Mutantes, contada 100 páginas
depois, nem o drama do abuso torna o livro pesado. A caminho dos 69 anos, a
serem completados em 31 de dezembro deste ano de 2016, Rita Lee Jones rememora
coisas boas e más da vida com leveza, sinceridade e com a espirituosidade
característica dos textos da artista.
Sim,
Rita sustenta que foi expulsa d'Os
Mutantes – ao qual se refere no livro como Os Mutas – e avalia com rigor os
discos do trio que formou em 1966 com os irmãos Arnaldo Dias Baptista e Sergio
Dias Baptista. Mas, como ela mesma ressalta, conta no livro apenas o lado
da moeda dela. O título Uma
autobiografia já explicita o caráter pessoal do texto, nem por isso menos
revelador. Rita recorda em detalhes a infância e a adolescência vivida com a
mãe, as três irmãs e a madrinha em clã majoritariamente feminino, mas governado
com rédeas curtas pelo pai austero, apelidado no livro de Sargento.
Rita
é de Sampa, mas nunca foi santa. Jamais esconde as traquinagens que fez ao
longo da vida. Desde fumar maconha com o pai (a inesperado convite dele) no
sótão da casa da família até as peraltices adolescentes e adultas. Diplomática,
às vezes não dá nome à santa (como o da cantora então desconhecida que Rita
surpreendeu na casa de Jorge Ben Jor
ao procurar o compositor para pedir música para Os Mutantes), mas às vezes não se furta a qualificar colegas com
adjetivos pouco lisonjeiros, casos de Edu
Lobo, retratado como arrogante, e da própria família Baptista, apontada
como pouco asseada.
Contudo,
Rita jamais destila rancor. Os veneninhos são embutidos na narrativa com fofura
e finas ironias. Nem por isso a falta de afinidade com o guitarrista Sergio Dias fica menos evidente.
Editada com quatro cadernos de fotos que retratam todas as fases de Rita, a
autobiografia flui tanto pelo poder de sedução do texto como pela interessante
história de vida da autora.
Uma
das bossas da edição é incluir adendos creditados a um fantasminha camarada que
expõe dados concretos da biografia de Rita, já que ela assume não ter rigor com
datas. É Phanton, o fantasminha,
quem informa que o seminal trio Teenage
Singers, um dos embriões que gestaram Os
Mutantes, entrou no estúdio pela primeira vez em 1964 para fazer vocais em
álbum do cantor paulistano José
Glagliard Filho, conhecido artisticamente como Prini Lorez. É também Phanton
quem conta que a estreia d'Os Mutantes no programa de TV de Ronnie Von – cantor que batizou e
avalizou o grupo, aliás – aconteceu em 15 de outubro de 1966.
Só
que datas são detalhes tão pequenos na vida assumidamente gauche de Rita Lee, ovelha negra da família e da
própria música pop brasileira. Importa muito mais o amor de Rita pela cachorra Danny, exposto ao longo do livro. A
propósito, Danny adoeceu quando Rita
foi presa, em 1976, e esperou a dona sair da prisão para enfim sair de cena,
como a artista conta na fase em que já estava envolvida com o compositor e
guitarrista Roberto de Carvalho,
fiel parceiro na música e na vida, com quem fez o Carnaval pop entre 1979 e
1982.
Longe
de ter feito autobiografia chapa branca, Rita de Sampa apresenta livro com
todas as cores vivas da vida, sem carregar no drama, mas sem escondê-lo quando
ele existiu. Casos da depressão da maturidade e da decisão de interromper uma
gravidez arriscada. "Mesmo já tendo
abandonado a religião, entrei no mea culpa catolicista e me autocondenei ao
mármore do inferno", lembra Rita, falando sério, mas no tom
espirituoso do texto.
Mais
para o fim, Rita assume o vício do alcoolismo. A bebida, argumenta, a ajudou a
não encarar de frente as sucessivas perdas (do pai Charles, da irmã Mary e
da mãe cúmplice, Romilda, a Chesa). "A novela da vida virou
disco-internação-show-internação-casa-internação, e assim caminhava minha
maturidade transviada", admite Rita na página 211.
Com
doses altas de autocrítica vocal ("Cantar
nunca foi natural para mim", acredita) e de orgulho da própria
trajetória ("Não faço a Madalena
arrependida com discursinho antidrogas, não me culpo por ter entrado em muitas,
eu me orgulho de ter saído de todas"), Rita Lee Jones faz no livro um sedutor balanço existencial, sem
saudosismo, já enxergando no horizonte a finitude. Mas sem saber o final, como
já dizia há 40 anos na letra de Coisas da
vida (Rita Lee, 1976), exposta na abertura do livro: "Depois da estrada começa uma grande avenida
/ No fim da avenida / Existe uma chance, uma sorte, uma nova saída / Qual é a
moral? Qual vai ser o final / Dessa história?". Até aqui, a história
foi bonita, corajosa, e, em muitos momentos, feliz.