Não
é por acaso que o acústico show A voz e
o violão, de Daniela Mercury,
ganha registro em CD e DVD com um axé adicionado ao título original de 2015. Ao
fazer a gravação ao vivo do show em 13 de novembro do ano passado, no majestoso
Teatro Castro Alves da cidade natal de Salvador (BA), a cantora e compositora
baiana aumentou a dose de sucessos da axé music no roteiro, além de ter trocado
de violonista – Alexandre Vargas
assumiu o posto (nos violões de aço e de nylon) que era de Alex Mesquita no início da turnê – e de ter limado excessos.
Coprodução
da empresa Páginas do Mar com o Canal Brasil, o CD e o DVD O axé, a voz e o violão chegam ao
mercado fonográfico neste mês de outubro com distribuição da gravadora Biscoito Fino. O show tem conceito que,
em cena, resulta tão sedutor quanto frustrante. A sedução vem do fato de, ao
sintetizar o toque do axé no violão de Alexandre
Vargas, Daniela evidenciar toda a beleza melódica que há em sambas-reggae
como Negrume da noite (Paulinho do
Reco e Cuiuba, 1989) e Ilê pérola negra /
O canto do negro (Guigio, René Veneno e Miltão, 2000), joia da discografia da
artista. Já a frustração ocorre porque os temas perdem, no toque do violão, a
vibração típica do gênero e dos hits da axé music.
Gravado
pela sexta vez por Daniela, o próprio mashup com Ilê pérola negra / O canto do negro é o melhor exemplo da perda.
Até porque o medley que junta O mais belo
dos belos (Adailton Poesia, Guiguio e Valter Farias, 1992) com Por amor ao Ilê (Guiguio, 1994) tem
amenizada a diluição da pulsação original por conta do ritmo marcado pelas
palmas percussivas da plateia.
Entre
perdas e ganhos, em relação à estreia carioca, o saldo do show perpetuado no
DVD é positivo. A entrada da artista em cena para cantar Dara (Daniela Mercury, 2000), como orixá absorto pela própria
dança, continua sendo um dos pontos altos do roteiro. O belo figurino de Eduardo Suppes (da Divina Pele)
contribui para realçar a beleza dos movimentos da cantora em cena.
Voz
que sempre lutou pela igualdade racial em Brasil que oprime o povo negro,
inclusive na Bahia negra, Ilê de luz
(Carlos Lima, o Suka, 1989) ilumina a vertente social da obra da artista em
medley com o resplandecente Negrume da
noite e com citação de Retirantes
(Dorival Caymmi, 1976). Daniela sempre cantou a vida difícil do negro.
Fora
do terreirão do samba-reggae, a cantora oscila. Acerta o tom de Noturno (Graco e Caio Silvio, 1979),
sucesso do cantor cearense Raimundo
Fagner, mas erra ao dissipar sentidos e significados de Há tempos (Dado Villa-Lobos, Marcelo
Bonfá e Renato Russo, 1989) – hit da banda Legião
Urbana – e de Superhomem, a canção
(Gilberto Gil, 1979). Já gravadas por Daniela nos anos 2000, as baladas Como vai você? (Antonio Marcos e Mário
Marcos, 1972) e Meu plano (Lenine e
Dudu Falcão, 2003) se ajustam mais ao tom íntimo do show. Até porque, em O axé, a voz e o violão, a emissão
vocal de Daniela soa mais límpida do que no anterior álbum de estúdio, o
verborrágico Vinil virtual (2015).
Enfim,
o balé de Daniela não é tão mulato nesta gravação ao vivo de tom acústico e
minimalista. Falta chão ao terreiro brasileiro citado pela cantora antes de
cantar o samba Requebra (Pierre
Onassis e Nego, 1993), tema do grupo afro Olodum.
Contudo, da forma como está perpetuado no DVD, o show afirma a ideologia nobre
de artista que tem axé na voz, no corpo e na alma musical. O canto de Daniela Mercury é – sobretudo – o
resistente e político canto negro do povo da cidade de Salvador.