segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Crítica | “A Tempestade ou O Livro dos Dias” – Legião Urbana

A Tempestade ou O Livro dos Dias, penúltimo álbum de estúdio da banda Legião Urbana, foi lançado em 20 de setembro de 1996. Em 11 de outubro daquele mesmo ano, Renato Russo, vocalista e principal letrista da banda, veio a falecer, no Rio de Janeiro, vítima de complicações geradas pela AIDS. A divulgação de A Tempestade lembrou aos brasileiros a tristeza e um pouco de morbidez que fora a divulgação de Por Aí (1991), de Cazuza, que também morrera de AIDS, em 1990.

Mesmo sabendo da doença desde 1989, Renato Russo manteve para si todas as indicações de que era portador do vírus. Haviam inúmeras especulações sobre isso, mas elas iam e vinham à medida que a banda lançava um novo disco e resolvia fazer a parte que “menos gostava” do processo, ou seja, sair em turnê. É importante lembrar que o grupo vinha da estrondosa jornada de shows do álbum O Descobrimento do Brasil (1993), que desgastou bastante a já frágil saúde de Renato Russo. No período de inatividade após o fim da turnê, o músico voltou a beber descontroladamente e há indícios que tenha voltado a usar drogas pesadas, embora por um curto espaço de tempo, pois viriam nesse meio tempo dois projetos solo (nos quais o produtor e músico Carlos Trilha tem importância vital) e que ocupariam Russo imensamente, o primeiro, o excelente álbum em inglês, The Stonewall Celebration Concert (1994), e o segundo, o ótimo álbum em italiano, Equilíbrio Distante (1995). Foi após o lançamento e relativamente breve divulgação deste último, que os arranjos para A Tempestade começaram a aparecer.


A ideia de um novo disco da Legião era uma necessidade criativa para Renato (mesmo padrão, tanto na doença quanto na sequência de lançamento de um penúltimo álbum, e depois, um disco póstumo, observados com o Queen, entre Innuendo e Made in Heaven), e o projeto começou com forte presença de Carlos Trilha (que gravou os teclados, bateria eletrônica/caixa de ritmos e baixo eletrônico), mas devido ao comportamento explosivo de Renato nesse momento, o peso da produção ficou com Dado Villa-Lobos, que dividiu os créditos de produtor com a Legião Urbana, mas que foi muito mais presente, tanto no trabalho com o disco quanto servindo de ligação entre o amigo moribundo e o restante da banda.

O grupo está aqui em um estágio de maturidade tremendo. Mesmo com a voz de Renato Russo visivelmente mais fraca (isso é ainda mais perceptível nas faixas escolhidas para o disco seguinte, Uma Outra Estação, de 1997, que deveria ter sido parte de um álbum duplo, lançado com A Tempestade, mas a ideia foi abandonada devido ao valor que o projeto ficaria no mercado, afinal, eram 15 músicas em cada CD!), o tom melancólico das letras e a musicalidade, havia uma atmosfera toda especial na produção do disco, algo que ganharia ainda mais significado algumas semanas depois, quando da morte do vocalista. Na capa do álbum não haviam as frases habituais da banda, mas o dizer “O Brasil é uma república federativa, cheia de árvores e gente dizendo adeus“, de Oswald de Andrade.


Ainda sobre a produção, vale levantar um fato curioso: Renato queria que o disco se chamasse A Tempestade (título da última peça de Shakespeare), mas Bonfá (ou Dado? As fontes sempre divergem quanto a isso), queria que se chamasse O Livro dos Dias. O disco acabou ganhando os dois títulos, mas só A Tempestade foi impresso na capa e dentre as canções, só entrou O Livro dos Dias. A faixa A Tempestade foi colocada no álbum seguinte.

Exceto em dois casos, Longe do Meu Lado (parceria com Bonfá) e Soul Parsifal (parceria com Marisa Monte), todas as faixas de A Tempestade foram compostas por Renato Russo, e não há como negar o tom melancólico, intimista e reflexivo das canções. Percebam, por exemplo, que em Natália, a primeira faixa, não há exatamente uma garota com esse nome, mas uma “entidade”, um “estado da vida”, a juventude, sendo analisada. O oposto disso vem com Leila, música coberta de ternura que narra uma amizade entre um homem (Renato?) e uma mulher. Diferente de Natália, Leila traz estrofes com guitarra menos pesada e mais sintetizadores orquestrais, sendo musicalmente mais densa, poeticamente mais expansiva, cronista, e talvez feliz.


Baseada no filme homônimo do diretor italiano Michelangelo Antonioni, L’Avventura traz o ótimo violão de Dado e bateria simples, mas precisa, de Bonfá, em uma mensagem ampla de significados, uma música de amor diferente, um tipo de exercício que vai do eu lírico para seu par, em um ambiente musical contendo algumas distorções de cordas (torna a base da canção triste, mas sutil), que também observamos em alguns momentos de Música de Trabalho, com a diferença que esta é de uma ousadia deliciosa de Bonfá nas guitarras, com diversas camadas de cordas metálicas acompanhadas de uma percussão que lembra uma marcha bastante acelerada, excelente arranjo para uma canção sobre excesso de trabalho e desprendimento das pessoas que amamos em prol do “fazer muito dinheiro”.

Em seguida vem uma poesia sobre o abandono, Longe do Meu Lado, a faixa mais Lana Del Rey de um álbum já bastante denso e depressivo. Ela é belíssima, traz uma única frase forte na voz de Renato — aqui, ele se sentia mais confortável nos graves quase em fade out, por motivos óbvios — e uma peça orquestral que segue todo o lamento do cantor. Na sequência, temos a única música que recebeu a gravação definitiva dele para o disco, A Via Láctea [o vocalista não conseguiu fazer nada além da voz-base para as outras faixas]. A letra indica debilitação do eu lírico, fala de uma “febre que não passa” e, por mais triste que seja, traz uma pitada de esperança. A voz marcante, os teclados de Trilha e o belo teminha de violão ao final definem a faixa como a primeira parte de um canto do cisne que se completaria no encerramento do disco.

Música Ambiente traz um pedal de efeito wah wah em uma linha de fundo, com violões utilizados no momento e no tom certos, e um tom psicodélico no tema de guitarra ao final, tudo para nos contar a história de um relacionamento bom que está “marcado para morrer”. É uma faixa simples em sua mensagem, mas não chorosa. A morte aqui (a partida de um dos pares é para a morte, não para “outro lugar na Terra”) é tratada como parte de um ciclo. A camada instrumental final aglutina isso de maneira perfeita, fazendo jus ao título. Esta é, juntamente com Soul Parsifal — parceria com Marisa Monte, que mostra um outro jeito do Legião fazer música, especialmente na harmonia –, a faixa mais diferente de A Tempestade. Ouçam com atenção a voz de Renato Russo nessa música. Mesmo em tons baixos, ela está quase tão imponente como antes, um dos melhores registros desses tapes-base gravados por ele já muito doente.


Com construções rítmicas levemente diferentes, três blocos pequenos de arranjos muito bem tocados (bons momentos de violão e viola, além de uma guitarra mais pesada no bloco do meio) e uma mensagem de crítica social cheia de sentimento, Aloha é uma canção de “juventude tardia”. Ou de um homem de quase 40 anos que ainda se via, em algumas coisas, como um jovem rebelde. Hoje, a mensagem pode parecer clichê para alguns, mas ela tem significado tão simples e tão honesto que não deixa de encantar. Mas talvez, a verdadeira mensagem para a juventude tenha sido reservada para Dezesseis, que cita Janis Joplin, Led Zeppelin, Rolling Stones, Beatles e talvez traga um lamento oculto à morte de Ayrton Senna, em 1994, assim como o personagem da canção, ceifado em um acidente de carro, após “a curva fatal“. Há um coro final que fortalece o tom de música-homenagem, toda construída como um rock mais sujo que era a característica da Legião.

Uma dica: ao ouvir Mil Pedaços, façam uma vez sem um dos lados do fone e depois troquem, para perceber a participação discreta, mas muito bela do cello na segunda metade, a percussão leve do final e, claro, o caráter de uma balada de amor aos moldes românticos da banda. Uma peça acústica realmente tocante.

Já em 1º de Julho, que é uma demo — infelizmente! -, o tom é outro. A faixa foi composta para Cássia Eller, que a gravou no seu álbum de 1994. A força vocal do cantor aqui é grande e limpa, porque a demo foi gravada, juntamente com Carlos Trilha, nas sessões de The Stonewall.

A tríade que finaliza o fisco é para tocar o coração do mais duro dos humanos. Esperando Por Mim tem uma linha de baixo e teclados melancólicos e alguns canais de violões muito inspiradores, dando a base de uma despedida para familiares e amigos. O cantor anuncia o fim de um ciclo e Dado caprichou muito na produção da faixa, condição que não vemos tanto na instrumentalização (cadê a verdadeira bateria dessa faixa?) de Quando Você Voltar, apesar de a letra e a voz de Renato Russo valeram a pena. Não é nem de longe uma canção ruim, é que se colocarmos frente à produção de todas as outras, acaba se tornando um pouco acomodada demais.


E então chega a faixa que [espaço para o crítico ficar de lado por uma frase] quase sempre me faz chorar ou lacrimejar ou ficar olhando para o nada por alguns minutos. O Livro dos Dias. A canção é uma análise direta de uma vida boêmia. Não há grandes explosões das cordas ou da bateria, mas todo o arranjo funciona para colocar um fim emotivo à jornada, crescendo no refrão e deixando o ouvinte com uma guitarra tocando uma linha de conciliação, talvez da música que definia ali o seu fim, em um último estágio das coisas. Tendo em vista o que aconteceu depois, foi um adeus muitíssimo bem dado.

A Tempestade ou O Livro dos Dias não foi um álbum de hits. Apesar de ter vendido bastante, não se trata de uma produção constantemente lembrada pela maioria dos legionários Brasil a fora. A questão é que os registros, o contexto e a qualidade de produção desse projeto, mesmo que tragam um Renato Russo de voz debilitada, mostram uma banda em um estágio mais exigente e musicalmente até melhor que em outros discos mais badalados. É preciso ter cuidado, porém. Com tanto sentimento em jogo, ouvir A Tempestade ou O Livro dos Dias pode trazer uma torrente de sentimentos para qualquer um. Não é raro querer pedir um abraço longo de alguém, depois de terminada a audição.