A Tempestade ou O Livro dos Dias,
penúltimo álbum de estúdio da banda Legião
Urbana, foi lançado em 20 de setembro de 1996. Em 11 de outubro daquele
mesmo ano, Renato Russo, vocalista e
principal letrista da banda, veio a falecer, no Rio de Janeiro, vítima de
complicações geradas pela AIDS. A divulgação de A Tempestade lembrou aos brasileiros a tristeza e um pouco de
morbidez que fora a divulgação de Por Aí
(1991), de Cazuza, que também
morrera de AIDS, em 1990.
Mesmo
sabendo da doença desde 1989, Renato Russo
manteve para si todas as indicações de que era portador do vírus. Haviam
inúmeras especulações sobre isso, mas elas iam e vinham à medida que a banda
lançava um novo disco e resolvia fazer a parte que “menos gostava” do processo, ou seja, sair em turnê. É importante
lembrar que o grupo vinha da estrondosa jornada de shows do álbum O Descobrimento do Brasil (1993), que
desgastou bastante a já frágil saúde de Renato
Russo. No período de inatividade após o fim da turnê, o músico voltou a
beber descontroladamente e há indícios que tenha voltado a usar drogas pesadas,
embora por um curto espaço de tempo, pois viriam nesse meio tempo dois projetos
solo (nos quais o produtor e músico Carlos
Trilha tem importância vital) e que ocupariam Russo imensamente, o primeiro,
o excelente álbum em inglês, The
Stonewall Celebration Concert (1994), e o segundo, o ótimo álbum em
italiano, Equilíbrio Distante
(1995). Foi após o lançamento e relativamente breve divulgação deste último,
que os arranjos para A Tempestade
começaram a aparecer.
A
ideia de um novo disco da Legião era uma necessidade criativa para Renato
(mesmo padrão, tanto na doença quanto na sequência de lançamento de um
penúltimo álbum, e depois, um disco póstumo, observados com o Queen, entre Innuendo e Made in Heaven),
e o projeto começou com forte presença de Carlos
Trilha (que gravou os teclados, bateria eletrônica/caixa de ritmos e baixo
eletrônico), mas devido ao comportamento explosivo de Renato nesse momento, o
peso da produção ficou com Dado
Villa-Lobos, que dividiu os créditos de produtor com a Legião Urbana, mas que foi muito mais presente, tanto no trabalho
com o disco quanto servindo de ligação entre o amigo moribundo e o restante da
banda.
O
grupo está aqui em um estágio de maturidade tremendo. Mesmo com a voz de Renato Russo visivelmente mais fraca
(isso é ainda mais perceptível nas faixas escolhidas para o disco seguinte, Uma Outra Estação, de 1997, que deveria
ter sido parte de um álbum duplo, lançado com A Tempestade, mas a ideia foi abandonada devido ao valor que o
projeto ficaria no mercado, afinal, eram 15 músicas em cada CD!), o tom
melancólico das letras e a musicalidade, havia uma atmosfera toda especial na
produção do disco, algo que ganharia ainda mais significado algumas semanas
depois, quando da morte do vocalista. Na capa do álbum não haviam as frases
habituais da banda, mas o dizer “O Brasil
é uma república federativa, cheia de árvores e gente dizendo adeus“, de Oswald de Andrade.
Ainda
sobre a produção, vale levantar um fato curioso: Renato queria que o disco se
chamasse A Tempestade (título da
última peça de Shakespeare), mas Bonfá (ou Dado? As fontes sempre divergem quanto a isso), queria que se
chamasse O Livro dos Dias. O disco
acabou ganhando os dois títulos, mas só A
Tempestade foi impresso na capa e dentre as canções, só entrou O Livro dos Dias. A faixa A Tempestade foi colocada no álbum
seguinte.
Exceto
em dois casos, Longe do Meu Lado
(parceria com Bonfá) e Soul Parsifal (parceria com Marisa Monte), todas as faixas de A Tempestade foram compostas por Renato Russo, e não há como negar o tom
melancólico, intimista e reflexivo das canções. Percebam, por exemplo, que em Natália, a primeira faixa, não há
exatamente uma garota com esse nome, mas uma “entidade”, um “estado da vida”,
a juventude, sendo analisada. O oposto disso vem com Leila, música coberta de ternura que narra uma amizade entre um
homem (Renato?) e uma mulher.
Diferente de Natália, Leila traz estrofes com guitarra menos
pesada e mais sintetizadores orquestrais, sendo musicalmente mais densa,
poeticamente mais expansiva, cronista, e talvez feliz.
Baseada
no filme homônimo do diretor italiano Michelangelo
Antonioni, L’Avventura traz o
ótimo violão de Dado e bateria
simples, mas precisa, de Bonfá, em
uma mensagem ampla de significados, uma música de amor diferente, um tipo de
exercício que vai do eu lírico para seu par, em um ambiente musical contendo
algumas distorções de cordas (torna a base da canção triste, mas sutil), que
também observamos em alguns momentos de Música
de Trabalho, com a diferença que esta é de uma ousadia deliciosa de Bonfá nas guitarras, com diversas
camadas de cordas metálicas acompanhadas de uma percussão que lembra uma marcha
bastante acelerada, excelente arranjo para uma canção sobre excesso de trabalho
e desprendimento das pessoas que amamos em prol do “fazer muito dinheiro”.
Em
seguida vem uma poesia sobre o abandono, Longe
do Meu Lado, a faixa mais Lana Del
Rey de um álbum já bastante denso e depressivo. Ela é belíssima, traz uma
única frase forte na voz de Renato — aqui, ele se sentia mais confortável nos
graves quase em fade out, por motivos óbvios — e uma peça orquestral que segue
todo o lamento do cantor. Na sequência, temos a única música que recebeu a
gravação definitiva dele para o disco, A
Via Láctea [o vocalista não conseguiu fazer nada além da voz-base para as
outras faixas]. A letra indica debilitação do eu lírico, fala de uma “febre que não passa” e, por mais triste
que seja, traz uma pitada de esperança. A voz marcante, os teclados de Trilha e
o belo teminha de violão ao final definem a faixa como a primeira parte de um
canto do cisne que se completaria no encerramento do disco.
Música Ambiente traz um pedal de efeito wah wah em uma linha de fundo,
com violões utilizados no momento e no tom certos, e um tom psicodélico no tema
de guitarra ao final, tudo para nos contar a história de um relacionamento bom
que está “marcado para morrer”. É uma
faixa simples em sua mensagem, mas não chorosa. A morte aqui (a partida de um
dos pares é para a morte, não para “outro
lugar na Terra”) é tratada como parte de um ciclo. A camada instrumental
final aglutina isso de maneira perfeita, fazendo jus ao título. Esta é,
juntamente com Soul Parsifal —
parceria com Marisa Monte, que
mostra um outro jeito do Legião fazer música, especialmente na harmonia –, a
faixa mais diferente de A Tempestade.
Ouçam com atenção a voz de Renato Russo
nessa música. Mesmo em tons baixos, ela está quase tão imponente como antes, um
dos melhores registros desses tapes-base gravados por ele já muito doente.
Com
construções rítmicas levemente diferentes, três blocos pequenos de arranjos
muito bem tocados (bons momentos de violão e viola, além de uma guitarra mais
pesada no bloco do meio) e uma mensagem de crítica social cheia de sentimento, Aloha é uma canção de “juventude tardia”. Ou de um homem de
quase 40 anos que ainda se via, em algumas coisas, como um jovem rebelde. Hoje,
a mensagem pode parecer clichê para alguns, mas ela tem significado tão simples
e tão honesto que não deixa de encantar. Mas talvez, a verdadeira mensagem para
a juventude tenha sido reservada para Dezesseis,
que cita Janis Joplin, Led Zeppelin, Rolling Stones, Beatles
e talvez traga um lamento oculto à morte de Ayrton Senna, em 1994, assim como o personagem da canção, ceifado
em um acidente de carro, após “a curva
fatal“. Há um coro final que fortalece o tom de música-homenagem, toda
construída como um rock mais sujo que era a característica da Legião.
Uma
dica: ao ouvir Mil Pedaços, façam uma
vez sem um dos lados do fone e depois troquem, para perceber a participação
discreta, mas muito bela do cello na segunda metade, a percussão leve do final
e, claro, o caráter de uma balada de amor aos moldes românticos da banda. Uma
peça acústica realmente tocante.
Já
em 1º de Julho, que é uma demo —
infelizmente! -, o tom é outro. A faixa foi composta para Cássia Eller, que a gravou no seu álbum de 1994. A força vocal do
cantor aqui é grande e limpa, porque a demo foi gravada, juntamente com Carlos Trilha, nas sessões de The Stonewall.
A
tríade que finaliza o fisco é para tocar o coração do mais duro dos humanos. Esperando Por Mim tem uma linha de baixo
e teclados melancólicos e alguns canais de violões muito inspiradores, dando a
base de uma despedida para familiares e amigos. O cantor anuncia o fim de um
ciclo e Dado caprichou muito na
produção da faixa, condição que não vemos tanto na instrumentalização (cadê a
verdadeira bateria dessa faixa?) de Quando
Você Voltar, apesar de a letra e a voz de Renato Russo valeram a pena. Não é nem de longe uma canção ruim, é
que se colocarmos frente à produção de todas as outras, acaba se tornando um
pouco acomodada demais.
E
então chega a faixa que [espaço para o crítico ficar de lado por uma frase]
quase sempre me faz chorar ou lacrimejar ou ficar olhando para o nada por
alguns minutos. O Livro dos Dias. A
canção é uma análise direta de uma vida boêmia. Não há grandes explosões das
cordas ou da bateria, mas todo o arranjo funciona para colocar um fim emotivo à
jornada, crescendo no refrão e deixando o ouvinte com uma guitarra tocando uma
linha de conciliação, talvez da música que definia ali o seu fim, em um último
estágio das coisas. Tendo em vista o que aconteceu depois, foi um adeus
muitíssimo bem dado.
A Tempestade ou O Livro dos Dias não foi um álbum de hits. Apesar de ter vendido
bastante, não se trata de uma produção constantemente lembrada pela maioria dos
legionários Brasil a fora. A questão é que os registros, o contexto e a
qualidade de produção desse projeto, mesmo que tragam um Renato Russo de voz debilitada, mostram uma banda em um estágio
mais exigente e musicalmente até melhor que em outros discos mais badalados. É
preciso ter cuidado, porém. Com tanto sentimento em jogo, ouvir A Tempestade ou O Livro dos Dias pode
trazer uma torrente de sentimentos para qualquer um. Não é raro querer pedir um
abraço longo de alguém, depois de terminada a audição.