Há
duas questões que envolvem a publicação de Só
por hoje e para sempre - Diário do recomeço, primeiro de uma série de
livros póstumos de Renato Russo
(1960 - 1996) que a Companhia das Letras vai pôr no mercado literário a partir
deste ano de 2015.
A
primeira questão é ética e diz respeito à publicação de um livro que justifica
como poucos o clichê íntimo e pessoal. De acordo com texto publicado na orelha
do livro, sem assinatura, a publicação do livro era um desejo do cantor, compositor
e músico carioca que ganhou fama nacional com a criação em 1982, em Brasília
(DF), da Legião Urbana, banda que
existiu até a morte de seu líder e mentor, em 1996.
Texto
escrito na introdução do livro por Giuliano
Manfredini - filho e herdeiro de Renato
Russo - reproduz diálogo de pai e filho em que o primeiro revela ao filho
que a intenção de escrever rotineira e compulsivamente escondia também o desejo
de que, no futuro, as pessoas soubessem o que ele, Renato, sentia e pensava na
época.
Se
de fato havia esse desejo da parte de Renato, essa questão ética passa a ser
inexistente, ainda que publicações de livros póstumos do artista envolvam
também interesses comerciais. A outra questão é de ordem literária: o livro em
si é excelente e merece ser lido. Organizadas pelo jornalista carioca Leonardo Lichote, as notas escritas por
Russo em forma de diário durante os 29 dias de 1993 em que o cantor passou
internado na Vila Serena - clínica de reabilitação para dependentes químicos,
às voltas com o vício já incontrolável em álcool e drogas, situada na cidade do
Rio de Janeiro (RJ) - constituem verdadeiro tratado sobre a natureza da alma
humana.
O
grau de exposição e intimidade é total, o que justificou inclusive que as
personagens citadas por Russo em seus relatos tenham tido seus nomes ocultados
através de iniciais. Alguns efeitos desses 29 dias podem ser detectados em
algumas letras de O Descobrimento do
Brasil (EMI-Music, 1993), o álbum gravado pela Legião Urbana na sequência da saída de Renato da clínica. Mas nada
se compara ao teor íntimo dos relatos dos diários. Ao que parece, Russo
desnudou por completo sua alma ao relatar suas impressões sobre o tratamento e
suas motivações para ter se tornado um viciado em drogas e álcool (e para
deixar de sê-lo - objetivo primordial de sua internação).
Aparecem
nos escritos todas as feridas abertas naquela alma que vivia dias de tormento:
a autoestima baixa (ou mesmo nula em determinadas situações, inclusive
sexuais), a arrogância (alimentada pelas ilusões e pelos falsos amigos trazidos
com a fama), a autopiedade e as sensações de inadequação em várias situações
(dentro da clínica e fora dela, no meio artístico, antes da internação), entre
outras características comuns a quem passa por situações do tipo.
Paralelamente,
Russo descortina bastidores da Legião
Urbana - como a relação difícil com o baterista Marcelo Bonfá e como sua atração pelo guitarrista Dado Villa-Lobos (plenamente vivida no
plano da fantasia) - enquanto revela sentimentos positivos e negativos brotados
ao logo do tratamento.
O
livro é forte, contundente, expressivo. Até porque Russo tinha o dom de
escrever muito bem. Somente a carta de despedida endereçada a ele próprio - e
assinada pelo medo que o controlava, o tolhia e o anulava - vale por si a
aquisição e a leitura de Só por hoje e
para sempre.