“Viver é um desastre que sucede a alguns.”
Tomo o verso escrito por Caetano Veloso
como um elogio ao amor fati,
um canto de júbilo pela existência, pela singularidade da arte, pela vida em
seu caráter multiforme. Ora, em que consiste o “desastre” se não na própria incongruência entre o caos e a forma,
restando somente o ímpeto de conferir sentido a um turbilhão que nos é, antes
de mais nada, indiferente? Neste caso, o desastre não possui o significado de “catástrofe”, mas de algo que irrompe
inevitavelmente, de um acontecimento inexorável. Aqui, Recanto quer
dizer "re-cantar", refazer, recompor...
O
primeiro álbum que Caetano Veloso
produziu para Gal
Costa, Cantar (1974), com Perinho Albuquerque, se inscrevia no refluxo londrino, a partir do
qual ele e Gilberto Gil
reconfiguraram suas posições no cenário da música brasileira. Lá se pode
escutar a mistura de estilos (bossa, rock, soul, fado…) que caracterizou o
Tropicalismo, bem como os compositores afinados com o mesmo legado (Donato, Jobim, Péricles Cavalcanti, Carlos
Lyra, Mautner).
Porém,
percebe-se uma diferença importante. Nos primeiros discos, Gal experimentava
consideráveis variações de registro, ora investindo na economia singela de Domingo (com
Caetano, 67), ora esbanjando vigor e uma certa ironia, como nos dois discos
homônimos de 69 e Le Gal, de 70. A pluralidade de interesses cara ao Tropicalismo
contaminou seu canto até explodir no verdadeiro acontecimento que foi Gal a Todo Vapor,
disco e show.
Ocorre
que em Índia e, adiante, Cantar, estas
variações deram lugar a uma estabilidade estilística, que conjugava seu timbre
melífluo com energia e força de expressão. Pode-se dizer que até início da
década de 90, o canto de Gal Costa
manteve-se nesse registro, sem prejuízo para bons álbuns como Gal Canta Caymmi (1976)
e Água Viva (1978).
Desenho essa genealogia de seu canto para sublinhar algo que parece ter passado
desapercebido em relação a Recanto. Muitos foram seus produtores, de Manoel Barenbein a Arto Lindsay, de Mazolla
a Morelembaum, de Perinho Albuquerque a Waly Salomão, entre outros. Mas o canto
de Gal Costa, me parece, sempre foi
e ainda é um assunto para uma única pessoa: Gal Costa.
Desta
lista de produtores, o mais ousado e criativo é, sem dúvida, Caetano Veloso, que até por conta do
laço de amizade, conhece sua biografia, compreende seu pensamento musical, o
estágio no qual se encontra sua voz e, sobretudo, aquilo que Gal Costa de fato quer cantar. Em
entrevistas, ambos manifestaram receio em relação à proposta de Recanto, cuja sonoridade se encontraria em sintonia com duas
importantes cenas contemporâneas: a produção eletrônica e o improviso
instrumental. Pela primeira vez em muitos anos, um trabalho de Gal Costa retoma o espírito
experimental comum aos discos dos 60 e 70. Mesmo em relação a seu último
disco digno de nota, O Sorriso do Gato de Alice (1993), produzido por Arto Lindsay, Recanto sobressai,
pois trata-se não só de uma investida em outras sonoridades, mas na própria
concepção estética de intérprete.
As
programações eletrônicas enxutas, contribuição fundamental de Kassin, casam perfeitamente com seu
timbre grave e metálico, qualidade perceptível nas duas mais belas faixas do
disco, “Recanto Escuro” e “Tudo Dói”. Além da presença de
instrumentistas do calibre de Donatinho
(teclado), Alberto Continentino
(contrabaixo), Pedro Sá (guitarra) e
Luis Filipe de Lima (violão de 7
cordas), Recanto conta
com duas bandas cariocas especializadas em improvisação: o Rabotnik, no blues anômalo “O
Menino”, e o Dupplex de Bartolo
e Léo Monteiro na melancolia
visceral de “Madre Deus”. Há que se
notar também a inserção bossanovista da sugestiva “Mansidão”, com Morelembaum
e Daniel Jobim. Recanto se
afirma na harmonização entre universos aparentemente distantes, mas que
são singularmente unificados pelo canto de Gal.
Em
termos temáticos, tal qual o último disco de Chico Buarque, o momento pessoal forneceu a matéria-prima a partir
da qual Caetano elaborou as letras, misturando olhares e perspectivas: Caetano
olhando para Gal em “O Menino”, Gal
respondendo a Caetano em “Recanto Escuro”,
os dois se entreolham em “Mansidão”
(que retoma a prática do canto como tema, tal qual em Cantar) e riem juntos no
suingue sagaz de “Miami Maculelê” –
cujo pulo do gato é o prato do samba de roda se fazendo de hi-hat do
funk.
Por
fim, a visão segundo a qual Recanto é um
disco “eletrônico” é evidentemente equívoca, mero subproduto do jornalismo e do
marketing. Em Recanto, sobressai a forma do canto de Gal, criativamente
adaptado a um cenário tomado por uma certa melancolia, pela batucada robótica e
um conjunto de canções perceptivelmente esgarçadas pela intenção de dialogar
com a aridez dos arranjos – às vezes nos lembramos de Third, do Portishead, outras da “cristaleira digital” de Björk...
Explorando nuances, alturas e possibilidades no registro mais grave, no sussurro, na exploração simbólica dos efeitos (como em "Autotune Autoerótico"), ou nas entonações minimalistas de “Neguinho” e da soturna “Sexo e Dinheiro”, Gal, mais uma vez, reinventou-se a si mesma. Sim, viver é um “desastre” que nos leva a experimentar encontros, máscaras e identidades. “Só deus sabe o duro que eu dei”, ela canta pelas palavras de Caetano. Ou seria Caetano poetizando, “palavreando” o canto expressivo e inigualável de Gal Costa?
Explorando nuances, alturas e possibilidades no registro mais grave, no sussurro, na exploração simbólica dos efeitos (como em "Autotune Autoerótico"), ou nas entonações minimalistas de “Neguinho” e da soturna “Sexo e Dinheiro”, Gal, mais uma vez, reinventou-se a si mesma. Sim, viver é um “desastre” que nos leva a experimentar encontros, máscaras e identidades. “Só deus sabe o duro que eu dei”, ela canta pelas palavras de Caetano. Ou seria Caetano poetizando, “palavreando” o canto expressivo e inigualável de Gal Costa?
NOTA FINAL
★★★★★
★★★★★