quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Crítica | The Crown – 1ª Temporada

Normalmente, a adjetivação excessiva em textos, especialmente críticos, tendem a disfarçar a falta de rigor técnico do redator e depõe contra a qualidade geral do que se quer comunicar. No entanto, às vezes, por mais que o crítico se esforce, determinadas manifestações artísticas exigem uma adjetivação maior, talvez até mesmo exagerada para quem ainda não tiver saboreado a obra sob comento.

E é exatamente isso que acontece com The Crown, série produzida pela prolífica Left Bank Pictures (Outlander, Wallander) para o Netflix, que, já em sua magnífica e irretocável 1ª temporada, demonstra que talvez não existam adjetivos elogiosos suficientes para classificá-la, desde já colocando-se como forte candidata a uma chuva de prêmios. Afinal, seu criador e roteirista, Peter Morgan, não costuma brincar em serviço, tendo em seu currículo obras do mais alto gabarito como O Último Rei da Escócia, Frost/Nixon, A Rainha e Rush: No Limite da Emoção, todas, vale ressaltar, cinebiografias de variadas personalidades.

The Crown é, provavelmente (mas sei que é cedo demais para dizer), o ponto alto da capacidade narrativa de Morgan, que aborda a vida da Rainha Elizabeth II a partir de seu casamento, aos 21 anos, com Philip, que viria a ser o Duque de Edimburgo. Mais do que isso, na verdade, o objetivo do ambicioso trabalho de Morgan é a abordagem, como o título deixa muito claro, da Coroa, da Monarquia acima de tudo, acima mesmo dos coroados e monarcas, emprestando fortíssimo significado ao ditado de origem shakespeariana “pesada é a cabeça que segura a coroa” e variações e desvelando e justificando sua existência aparentemente anacrônica em pleno século XX.
Situada entre os acontecimentos vistos em O Discurso do Rei e A Rainha, a série foi projetada para ter 60 episódios em seis temporadas de 10 cada uma, com a primeira lidando com os primeiros poucos anos da coroação precoce de Elizabeth Windsor (Claire Foy) depois da morte de seu pai, o Rei George VI (Jared Harris) não muito tempo após seu casamento em 1947 – por amor – com Philip (Matt Smith), membro da família real “estendida”, mas originário da Grécia. A estrutura narrativa escolhida não poderia ser mais acertada, com cada episódio lidando com um tema em particular costurados em sucessão que, quando vistos em conjunto, ganham perfeita cadência e fluidez, contando uma grande e espetacular história maior.

Para lidar com a estranheza que uma visão “no microscópio” poderia causar a pessoas pouco acostumadas com a estrutura de governo britânica, uma monarquia constitucional, Morgan esconde o didatismo ao nos aproximar em close de Elizabeth – ou Lilibet, como é chamada carinhosamente –  e todas as suas dúvidas e problemas que têm que lidar no dia-a-dia, sejam questões de estado, sejam questões familiares. É uma visão da monarquia direcionada à monarquia, enfronhando o espectador nesse meio de forma surpreendentemente natural ao humanizar os membros da Coroa, ao desnudá-los completamente de toda a pompa e circunstância, somente para tornar ainda mais patente e literal o peso que cada um tem que carregar em suas cabeças e ombros.

Mesmo quando a série lida com aspectos exteriores ao da estrutura do Palácio de Buckingham, ela de certa forma lida com símbolos também, já que o Primeiro Ministro britânico, à época e pela terceira vez (não consecutiva), era ninguém menos do que Winston Churchill (John Lithgow), um dos maiores estadistas do século XX e que quase sozinho foi o responsável por manter o mundo livre dos nazistas. Já idoso, o Churchill que vemos é alguém que há muito passou do ponto alto de sua carreira e sua manutenção no cargo se dá por uma espécie de orgulho intransigente que seria melhor qualificado como uma obsessão. É um homem de grande inteligência que, mesmo sabendo de suas limitações físicas, recusa-se a reconhecê-las e a deixar o tempo correr seu curso, mas que nutre um profundo e inequívoco respeito pela Coroa. Com isso, Morgan acaba criando um magnífico embate entre o antigo e o novo, entre a tradição e a necessidade de reforma, entre a ancestralidade firme e o futuro incerto.
E o embate se dá, sobretudo, na pesada cabeça de Elizabeth II, ela mesmo ciente de que pode representar o futuro – jovem, bonita, inteligente -, ao mesmo tempo que precisa manter o passado intacto. Suas dúvidas, sua ignorância dos meandros políticos e sua ingenuidade inicial são manobradas discretamente por todos ao seu redor, colocando-a em rota de colisão com seu marido, cada vez mais castrado, e com sua irmã, a Princesa Margaret (Vanessa Kirby), que perigosamente começa a caminhar pelos mesmos passos de seu tio, o Duque de Windsor (Alex Jennings) que abdicara ao trono por amor à uma mulher divorciada, algo inadmissível para a Igreja. E é particularmente arrebatador e esclarecedor ver o frágil equilíbrio da Coroa, como se ela todo o tempo andasse na corda bamba e que, com uma leve brisa ou uma distração boba, pudesse vir abaixo, tornando as escolhas de Elizabeth ainda mais dolorosas e contundentes.

Mas a história privada da monarquia britânica é entrelaçada não só por questões políticas vindas do Gabinete de 10 Downing Street, como também pela geopolítica da época, com uma Inglaterra recém saída da guerra e completamente em frangalhos e gradativamente perdendo o status de sede do Império Britânico que não tão vagarosamente começa a deixar de existir. É como ver o começo do fim de uma tradição milenar ou um estudo antropológico de uma instituição que parece ter sempre existido debaixo de regras tão complexas que, como Churchill deixa bem claro, empresta um caráter mítico, de lenda, de uma história construída e pensada para inspirar e apaziguar ânimos.

E toda essa majestade se faz presente por um design de produção primoroso que parece não ter sofrido qualquer tipo de limitação orçamentária, além de ter recebido toda a bênção da Família Real (algo muito improvável diante das questões que a série aborda sem pudores). Cada detalhe é suntuoso, cada cenário é detalhado ao limite e cada filmagem em locação parece capturar o incomensurável tamanho de toda aquela estrutura que parece sair diretamente de lendas arturianas ou da pena de um J. R. R. Tolkien.

Os quatro diretores encarregados de traduzir toda essa magnificência em uma obra coesa e inteligente – Stephen Daldry, Philip Martin, Julian Jarrold e Benjamin Caron – utilizam a câmera como nosso olhar para dentro do coração de Elizabeth, coração que só pode ser compreendido quando vivenciamos, ao seu lado, toda sua vida regrada por agendas e compromissos dos mais importantes aos mais triviais, por uma vida de aparências que sufoca e esmaga sem piedade sua vida pessoal. As lentes são impiedosas aqui, com uma fotografia que poderia se perder com as cores e vastidão de exteriores e interiores, mas que nos transmite exatamente o que cada personagem sente, em uma constante espiral de restrição e sacrifícios dos mais variados e dos mais inimagináveis para alguém “de fora”.
Reparem, por exemplo, como a iluminação é trabalhada de maneira não a nos deslumbrar com o ambiente, mas sim ao nos apontar para os gestos e movimentos dos atores. Se o contra-luz é usado – e ele é maravilhosamente bem usado – é para às vezes nos passar a sensação de superioridade do personagem que fica enegrecido e outras para lidar com suas fraquezas, tudo dependendo da altura que o diretor posiciona sua câmera. Ainda, se a luz inunda um ambiente, ela tem sempre mais força no ponto focal da narrativa daquele momento, reduzindo um enorme ambiente a um pequeno espaço sem o uso de planos mais fechados que são utilizados cirurgicamente apenas para mergulhar na psiquê dos personagens. E o mesmo vale para o abundante uso de luz natural – ou uma excelente e crível mimetização da luz natural – que não esconde, mas também não glorifica essa monarquia que vemos de dentro em cada detalhe, para o bem ou para o mal.

E a música tema composta por Hans Zimmer que assombra a abertura e cresce no encerramento de cada episódio é, arriscaria dizer, um de seus melhores trabalhos dos últimos anos (e isso não quer dizer pouca coisa), ao mesmo tempo simples e grandioso, comunicando a dúvida e elevando a tensão e a emoção quando necessário. O restante da música da série, que ficou ao encargo de Rupert Gregson-Williams (responsável pela trilha de A Lenda de Tarzan), também não desaponta ao usar os motifs de Zimmer e expandindo-os para lidar com os diversos personagens que povoam a série.

Mas deixei o mais importante por último, a verdadeira alma de toda a temporada. Ou as almas para ser justo. O elenco de The Crown é, em uma palavra apenas, irretocável. Mas não me limitarei a uma palavra. Seria desrespeitoso.

Claire Foy, jovem atriz britânica com um currículo inexpressivo até aqui, tem, na série, o papel de sua vida. A juventude e a vida alegre em família que vive é bruscamente interrompida pela morte do pai, que a obriga a tomar a coroa e o cetro de Rainha da Inglaterra e do Império Britânico, cada vez mais levando-a a abrir caminho para Elizabeth II e o que ela representa em detrimento a Elizabeth Windsor, mulher, mãe, esposa, irmã e filha. Sua atuação contida, mas incrivelmente expressiva – pequenos movimentos no rosto e nas mãos, postura ao andar e sentar, hesitação na voz – nos convence de seu crescimento como soberana que precisa desumanizar-se e tornar-se o símbolo que todos esperam que seja. Sua transformação é de deixar qualquer espectador aturdido e ela só tende a melhorar em temporadas vindouras.

Mas Foy não está sozinha. Ainda no departamento de “atores jovens e com carreiras razoavelmente incipientes”, há Matt Smith, o 11º Doutor na cinquentenária série Doctor Who, que, com seu jeito desengonçado, enorme queixo e ar blasé, entrega um Philip apaixonado que testemunha a transformação de sua esposa e sofre com isso. Cada vez mais jogado para escanteio, ele vê a vida que ele gostaria de ter abrir espaço para algo pré-estabelecido e engessado que o obriga a funcionar como um peão sem vontade própria e com cada vez menos relevância. Assim como no caso de Foy, Smith nos faz crer em seu sofrimento e tem um trabalho transformativo de se tirar o chapéu.

E o mesmo vale para Vanessa Kirby como a Princesa Margaret que tem sua vida como um espelho dos eventos envolvendo seu tio marginalizado pela família, o Duque de Windsor. Aliás, Kirby e Jennings têm os papéis que mais explicitamente lidam com sentimentos “normais” e que mais se prendem a uma utopia de vida que não combina com os ditames da Coroa. Jennings é particularmente brilhante no papel, casando uma atitude de playboy entendiado – mas genuinamente apaixonado – com uma profunda tristeza por não mais poder ser rei ou mesmo fazer parte da família. Suas privações, assim como as demais do restante da família em graus diferentes, mais do que evidenciam que a Coroa vem com um preço altíssimo: a alma.

É claro, porém, que não poderia encerrar esta já longa crítica sem falar de John Lithgow. O ator americano simplesmente é Winston Churchill em uma emocionante atuação como um homem que não sabe quando parar e que se recusa a largar uma vida de mais de 50 anos de serviço público. Curvado, corcunda, sempre carrancudo e com um sotaque britânico na medida, Lithgow brilha em um personagem complexo que reúne o restante de força que sua versão mais nova um dia teve e uma subserviência belíssima à estrutura monárquica de seu país. É por meio de seus olhos e de seus diálogos que realmente entendemos a importância da Monarquia – essa mesmo, com M maiúsculo – sobre o monarca, da Coroa sobre o coroado. Ele vê o símbolo. Ele entende seu poder. Ele respeita a instituição que jurou servir acima de tudo. E o ator deixa isso transparecer em cada linha de diálogo, em cada passo arrastado e difícil que dá fardado com o usual fraque preto do personagem. Os episódios focados nele, sobretudo o penúltimo – Assassins – são os mais emocionantes da temporada, capazes de arrancar lágrimas de espectadores incautos.


Poucas séries mostram todo seu potencial apenas na primeira temporada. Em menor quantidade ainda são as séries que prendem logo no primeiro episódio, especialmente em se tratando de biografias. The Crown é uma que, independente das próximas temporadas, já merece destaque como uma das mais excepcionais da última década e que realmente faz jus a todo tipo de adjetivação positiva que críticos puderem derramar sobre ela. Um começo estupendo em mais um acachapante acerto de Peter Morgan e, claro, do Netflix.