Normalmente,
a adjetivação excessiva em textos, especialmente críticos, tendem a disfarçar a
falta de rigor técnico do redator e depõe contra a qualidade geral do que se
quer comunicar. No entanto, às vezes, por mais que o crítico se esforce, determinadas
manifestações artísticas exigem uma adjetivação maior, talvez até mesmo
exagerada para quem ainda não tiver saboreado a obra sob comento.
E
é exatamente isso que acontece com The
Crown, série produzida pela prolífica Left
Bank Pictures (Outlander, Wallander) para o Netflix, que, já em sua magnífica e irretocável 1ª temporada,
demonstra que talvez não existam adjetivos elogiosos suficientes para
classificá-la, desde já colocando-se como forte candidata a uma chuva de
prêmios. Afinal, seu criador e roteirista, Peter
Morgan, não costuma brincar em serviço, tendo em seu currículo obras do
mais alto gabarito como O Último Rei da
Escócia, Frost/Nixon, A Rainha e Rush: No Limite da Emoção, todas, vale ressaltar, cinebiografias de
variadas personalidades.
The Crown é, provavelmente (mas sei que é cedo demais para dizer),
o ponto alto da capacidade narrativa de Morgan, que aborda a vida da Rainha Elizabeth II a partir de seu
casamento, aos 21 anos, com Philip, que viria a ser o Duque de Edimburgo. Mais
do que isso, na verdade, o objetivo do ambicioso trabalho de Morgan é a
abordagem, como o título deixa muito claro, da Coroa, da Monarquia acima de
tudo, acima mesmo dos coroados e monarcas, emprestando fortíssimo significado
ao ditado de origem shakespeariana “pesada
é a cabeça que segura a coroa” e variações e desvelando e justificando sua
existência aparentemente anacrônica em pleno século XX.
Situada
entre os acontecimentos vistos em O
Discurso do Rei e A Rainha, a
série foi projetada para ter 60 episódios em seis temporadas de 10 cada uma,
com a primeira lidando com os primeiros poucos anos da coroação precoce de Elizabeth Windsor (Claire Foy) depois da morte de seu pai, o Rei George VI (Jared Harris)
não muito tempo após seu casamento em 1947 – por amor – com Philip (Matt Smith), membro da família real “estendida”, mas originário da Grécia. A
estrutura narrativa escolhida não poderia ser mais acertada, com cada episódio
lidando com um tema em particular costurados em sucessão que, quando vistos em
conjunto, ganham perfeita cadência e fluidez, contando uma grande e espetacular
história maior.
Para
lidar com a estranheza que uma visão “no microscópio” poderia causar a pessoas
pouco acostumadas com a estrutura de governo britânica, uma monarquia
constitucional, Morgan esconde o didatismo ao nos aproximar em close de
Elizabeth – ou Lilibet, como é chamada carinhosamente – e todas as suas dúvidas e problemas que têm
que lidar no dia-a-dia, sejam questões de estado, sejam questões familiares. É
uma visão da monarquia direcionada à monarquia, enfronhando o espectador nesse
meio de forma surpreendentemente natural ao humanizar os membros da Coroa, ao
desnudá-los completamente de toda a pompa e circunstância, somente para tornar
ainda mais patente e literal o peso que cada um tem que carregar em suas
cabeças e ombros.
Mesmo
quando a série lida com aspectos exteriores ao da estrutura do Palácio de
Buckingham, ela de certa forma lida com símbolos também, já que o Primeiro
Ministro britânico, à época e pela terceira vez (não consecutiva), era ninguém
menos do que Winston Churchill (John Lithgow), um dos maiores
estadistas do século XX e que quase sozinho foi o responsável por manter o
mundo livre dos nazistas. Já idoso, o Churchill que vemos é alguém que há muito
passou do ponto alto de sua carreira e sua manutenção no cargo se dá por uma
espécie de orgulho intransigente que seria melhor qualificado como uma obsessão.
É um homem de grande inteligência que, mesmo sabendo de suas limitações
físicas, recusa-se a reconhecê-las e a deixar o tempo correr seu curso, mas que
nutre um profundo e inequívoco respeito pela Coroa. Com isso, Morgan acaba
criando um magnífico embate entre o antigo e o novo, entre a tradição e a
necessidade de reforma, entre a ancestralidade firme e o futuro incerto.
E
o embate se dá, sobretudo, na pesada cabeça de Elizabeth II, ela mesmo ciente de que pode representar o futuro –
jovem, bonita, inteligente -, ao mesmo tempo que precisa manter o passado
intacto. Suas dúvidas, sua ignorância dos meandros políticos e sua ingenuidade
inicial são manobradas discretamente por todos ao seu redor, colocando-a em
rota de colisão com seu marido, cada vez mais castrado, e com sua irmã, a Princesa Margaret (Vanessa Kirby), que perigosamente começa a caminhar pelos mesmos
passos de seu tio, o Duque de Windsor
(Alex Jennings) que abdicara ao
trono por amor à uma mulher divorciada, algo inadmissível para a Igreja. E é
particularmente arrebatador e esclarecedor ver o frágil equilíbrio da Coroa,
como se ela todo o tempo andasse na corda bamba e que, com uma leve brisa ou
uma distração boba, pudesse vir abaixo, tornando as escolhas de Elizabeth ainda
mais dolorosas e contundentes.
Mas
a história privada da monarquia britânica é entrelaçada não só por questões
políticas vindas do Gabinete de 10 Downing Street, como também pela geopolítica
da época, com uma Inglaterra recém saída da guerra e completamente em
frangalhos e gradativamente perdendo o status de sede do Império Britânico que
não tão vagarosamente começa a deixar de existir. É como ver o começo do fim de
uma tradição milenar ou um estudo antropológico de uma instituição que parece
ter sempre existido debaixo de regras tão complexas que, como Churchill deixa
bem claro, empresta um caráter mítico, de lenda, de uma história construída e
pensada para inspirar e apaziguar ânimos.
E
toda essa majestade se faz presente por um design de produção primoroso que
parece não ter sofrido qualquer tipo de limitação orçamentária, além de ter
recebido toda a bênção da Família Real (algo muito improvável diante das
questões que a série aborda sem pudores). Cada detalhe é suntuoso, cada cenário
é detalhado ao limite e cada filmagem em locação parece capturar o
incomensurável tamanho de toda aquela estrutura que parece sair diretamente de
lendas arturianas ou da pena de um J. R.
R. Tolkien.
Os
quatro diretores encarregados de traduzir toda essa magnificência em uma obra
coesa e inteligente – Stephen Daldry,
Philip Martin, Julian Jarrold e Benjamin
Caron – utilizam a câmera como nosso olhar para dentro do coração de
Elizabeth, coração que só pode ser compreendido quando vivenciamos, ao seu
lado, toda sua vida regrada por agendas e compromissos dos mais importantes aos
mais triviais, por uma vida de aparências que sufoca e esmaga sem piedade sua
vida pessoal. As lentes são impiedosas aqui, com uma fotografia que poderia se
perder com as cores e vastidão de exteriores e interiores, mas que nos
transmite exatamente o que cada personagem sente, em uma constante espiral de
restrição e sacrifícios dos mais variados e dos mais inimagináveis para alguém
“de fora”.
Reparem,
por exemplo, como a iluminação é trabalhada de maneira não a nos deslumbrar com
o ambiente, mas sim ao nos apontar para os gestos e movimentos dos atores. Se o
contra-luz é usado – e ele é maravilhosamente bem usado – é para às vezes nos
passar a sensação de superioridade do personagem que fica enegrecido e outras
para lidar com suas fraquezas, tudo dependendo da altura que o diretor
posiciona sua câmera. Ainda, se a luz inunda um ambiente, ela tem sempre mais
força no ponto focal da narrativa daquele momento, reduzindo um enorme ambiente
a um pequeno espaço sem o uso de planos mais fechados que são utilizados
cirurgicamente apenas para mergulhar na psiquê dos personagens. E o mesmo vale
para o abundante uso de luz natural – ou uma excelente e crível mimetização da
luz natural – que não esconde, mas também não glorifica essa monarquia que
vemos de dentro em cada detalhe, para o bem ou para o mal.
E
a música tema composta por Hans Zimmer
que assombra a abertura e cresce no encerramento de cada episódio é, arriscaria
dizer, um de seus melhores trabalhos dos últimos anos (e isso não quer dizer
pouca coisa), ao mesmo tempo simples e grandioso, comunicando a dúvida e
elevando a tensão e a emoção quando necessário. O restante da música da série,
que ficou ao encargo de Rupert
Gregson-Williams (responsável pela trilha de A Lenda de Tarzan), também não desaponta ao usar os motifs de
Zimmer e expandindo-os para lidar com os diversos personagens que povoam a
série.
Mas
deixei o mais importante por último, a verdadeira alma de toda a temporada. Ou
as almas para ser justo. O elenco de The
Crown é, em uma palavra apenas, irretocável. Mas não me limitarei a uma
palavra. Seria desrespeitoso.
Claire Foy, jovem atriz britânica com um currículo inexpressivo até
aqui, tem, na série, o papel de sua vida. A juventude e a vida alegre em
família que vive é bruscamente interrompida pela morte do pai, que a obriga a
tomar a coroa e o cetro de Rainha da Inglaterra e do Império Britânico, cada
vez mais levando-a a abrir caminho para Elizabeth
II e o que ela representa em detrimento a Elizabeth Windsor, mulher, mãe, esposa, irmã e filha. Sua atuação
contida, mas incrivelmente expressiva – pequenos movimentos no rosto e nas
mãos, postura ao andar e sentar, hesitação na voz – nos convence de seu
crescimento como soberana que precisa desumanizar-se e tornar-se o símbolo que
todos esperam que seja. Sua transformação é de deixar qualquer espectador
aturdido e ela só tende a melhorar em temporadas vindouras.
Mas
Foy não está sozinha. Ainda no departamento de “atores jovens e com carreiras razoavelmente incipientes”, há Matt Smith, o 11º Doutor na
cinquentenária série Doctor Who,
que, com seu jeito desengonçado, enorme queixo e ar blasé, entrega um Philip
apaixonado que testemunha a transformação de sua esposa e sofre com isso. Cada
vez mais jogado para escanteio, ele vê a vida que ele gostaria de ter abrir
espaço para algo pré-estabelecido e engessado que o obriga a funcionar como um
peão sem vontade própria e com cada vez menos relevância. Assim como no caso de
Foy, Smith nos faz crer em seu sofrimento e tem um trabalho transformativo de
se tirar o chapéu.
E
o mesmo vale para Vanessa Kirby como
a Princesa Margaret que tem sua vida
como um espelho dos eventos envolvendo seu tio marginalizado pela família, o Duque de Windsor. Aliás, Kirby e
Jennings têm os papéis que mais explicitamente lidam com sentimentos “normais” e que mais se prendem a uma
utopia de vida que não combina com os ditames da Coroa. Jennings é
particularmente brilhante no papel, casando uma atitude de playboy entendiado –
mas genuinamente apaixonado – com uma profunda tristeza por não mais poder ser
rei ou mesmo fazer parte da família. Suas privações, assim como as demais do
restante da família em graus diferentes, mais do que evidenciam que a Coroa vem
com um preço altíssimo: a alma.
É
claro, porém, que não poderia encerrar esta já longa crítica sem falar de John Lithgow. O ator americano
simplesmente é Winston Churchill em
uma emocionante atuação como um homem que não sabe quando parar e que se recusa
a largar uma vida de mais de 50 anos de serviço público. Curvado, corcunda,
sempre carrancudo e com um sotaque britânico na medida, Lithgow brilha em um
personagem complexo que reúne o restante de força que sua versão mais nova um
dia teve e uma subserviência belíssima à estrutura monárquica de seu país. É
por meio de seus olhos e de seus diálogos que realmente entendemos a
importância da Monarquia – essa mesmo, com M maiúsculo – sobre o monarca, da
Coroa sobre o coroado. Ele vê o símbolo. Ele entende seu poder. Ele respeita a
instituição que jurou servir acima de tudo. E o ator deixa isso transparecer em
cada linha de diálogo, em cada passo arrastado e difícil que dá fardado com o
usual fraque preto do personagem. Os episódios focados nele, sobretudo o
penúltimo – Assassins – são os mais emocionantes da temporada, capazes de
arrancar lágrimas de espectadores incautos.
Poucas
séries mostram todo seu potencial apenas na primeira temporada. Em menor
quantidade ainda são as séries que prendem logo no primeiro episódio,
especialmente em se tratando de biografias. The Crown é uma que, independente das próximas temporadas, já
merece destaque como uma das mais excepcionais da última década e que realmente
faz jus a todo tipo de adjetivação positiva que críticos puderem derramar sobre
ela. Um começo estupendo em mais um acachapante acerto de Peter Morgan e, claro, do Netflix.