Assim como todo filme que adapta alguma obra do mundo dos jogos, existe uma mescla de ceticismo e expectativa por parte do público. É provável que seja outra bomba? Absolutamente, mas ainda ficamos na esperança de assistir uma boa adaptação. Chego a confessar que não estava realmente animado quando Dungeons & Dragons foi anunciado, porque o RPG de mesa é uma das principais fontes criativas de diversos arquétipos e clichês que vemos em obras de fantasia na cultura pop moderna. Logo, um blockbuster baseado em D&D me parecia a receita perfeita para um épico de fantasia genérico e padrão, mas comecei a mudar minha percepção quando descobri quem seriam os diretores: Jonathan Goldstein e John Francis Daley.
A dupla não é exatamente famosa, mas tem um currículo de comédias que sempre me chamaram a atenção por sua abordagem curiosa: fazer paródia de clichês sem negá-los. Foi assim em Quero Matar Meu Chefe e seus retratos exagerados de estereótipos profissionais ou em Homem-Aranha: De Volta ao Lar em sua leveza e previsibilidade narrativa que capturam a essência adolescente dos quadrinhos originais do teioso; ambos filmes que Goldstein e Francis Daley trabalharam como roteiristas. O ápice criativo da dupla veio com o divertido A Noite do Jogo, uma espécie de paródia/homenagem completamente hiperbólica para noite de jogos com amigos, cheia de reviravoltas cômicas e ideias inteligentes para diversos cenários aos jogadores.
Sinto que esse certo “descompromisso” de não se levar tão a sério, ao mesmo tempo que isso não é uma desculpa para um enredo superficial, é uma abordagem que se completa com D&D, um jogo de mesa que, por mais que alguns fãs clamem por mitologia detalhada e narrativas complexas, atinge seu ponto mais divertido quando é ridiculamente imprevisível e inocentemente recreativo. A equipe criativa captura essa essência de “o que vem a seguir?” e “qual é o próximo plano?” com um roteiro cheio de mudanças repentinas, macguffins, deus ex machina e diversos clichês do gênero de fantasia, que servem para a criação de diferentes atos de comédia e ação cheios de diálogos e momentos visuais que parodiam esses mesmos arquétipos, muitas das vezes com humor de autorreferência e easter-eggs – as piadas de Caverna do Dragão são impagáveis!
Muito do que assistimos é extremamente comum, com um grupo de heróis improváveis, cada um com alguma habilidade diferente, se juntando para salvar o mundo. Temos um líder charmoso e piadista em Edgin (Chris Pine), uma guerreira fodona com Holga (Michelle Rodriguez), um feiticeiro desajeitado com Simon (Justice Smith), etc, fora os antagonistas maniqueístas. Não vou perder tempo falando sobre o contexto da história, porque é o alfabeto de fantasias sobre salvar o mundo, mas quero debruçar sobre a trajetória em si e sobre os personagens.
Como vinha falando, os diretores gostam de um tom paródico em seus filmes. É possível notar isso desde as primeiras cenas do longa, com Edgin tendo diversas frases e monólogos que acenam e até tiram sarro das “regras” deste universo, rendendo ótimas piadas ao longo do filme sobre como a magia “resolve tudo” e a formação de planos, para dar dois exemplos do inteligente humor de autorreferência do texto. Alguns subterfúgios ajudam essa abordagem quase paródica, como a participação hilária do ex-marido da Holga, um dragão gordinho e outras sacadas visuais que são inesperadas para uma narrativa previsivelmente formulaica.
Claro que tenho algumas ressalvas com o aspecto genérico da história, como a aparição súbita de alguns artefatos (a introdução do cajado de “transporte” é extremamente preguiçosa, por exemplo), algumas resoluções fáceis, dramaticidade ligeira e um didatismo exacerbado quando atravessamos diferentes partes do enredo – em determinado momento, o roteiro até brinca com a ideia de “mais uma história”, o que me fez rir antes de… ouvir mais uma história. Mas são falhas pequenas se comparadas com a criatividade dos diretores com a construção dos atos da aventura, com momentos que são puro heist, como a inteligente sequência da carroça, ou um épico de fantasia, como o ato final, e às vezes pura comédia, como a cena à la Sam Raimi dos mortos conversando.
A produção é auxiliada por um elenco carismático, trabalhando com seus próprios arquétipos de escalação dos papéis, já que Rodriguez é uma figura conhecida como a mulher badass, Smith como o eterno jovem sem confiança e Pine com seu charme afiado. Em termos técnicos, não é um mundo de fantasia realmente distinto, com poucos cenários tendo designs que chamam a atenção e uma trilha sonora inexpressiva, mas temos uma mescla interessante de efeitos práticos e efeitos especiais que tornam o universo mais palpável, assim como os diretores têm um repertório imaginativo. Temos jogos de câmera fechados e ágeis para as cenas de heist, planos abertos para os momentos mais grandiosos, incluindo o clímax, e até algumas coreografias que lembram a febre de obras de ação desde a explosão de John Wick, com poucos cortes de cena e foco no trabalho marcial.
Em conclusão, o que mais me agradou em Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes é sua habilidade de transpor a jornada dos protagonistas como se tudo fosse um jogo, com diferentes fases, regras e reviravoltas. A construção de mundo é simples, com uma mitologia baseada em terminologias e explicações, mas o senso de aventura e entretenimento nasce da maneira como o argumento padrão e o desenrolar previsível da história são desenvolvidos em torno de uma série de acontecimentos divertidíssimos, que chamam a atenção por seu elenco magnético, recompensas narrativas e um roteiro surpreendentemente cômico e paródico. Não existe nada de exatamente especial neste blockbuster, mas a produção surpreende sendo uma adaptação que não se leva tão a sério na mesma medida que sabe homenagear seu material de origem, sendo fiel à essência recreativa de D&D.
Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes
(Dungeons & Dragons: Honor Among Thieves – EUA, 2023)
Direção: Jonathan Goldstein, John Francis Daley
Roteiro: Jonathan Goldstein, John Francis Daley, Michael Gilio, Chris McKay
Elenco: Chris Pine, Michelle Rodriguez, Regé-Jean Page, Justice Smith, Sophia Lillis, Hugh Grant
Duração: 134 min.
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