No começo do novo século o R&B parecia tomar de
conta do mundo, principalmente dos EUA. Madonna,
como sempre, nadava contra a correnteza, com seu auge no nono álbum de estúdio
de sua carreira, "American Life",
lançado em 2003. Bem experimental e conceitual, o álbum foi recebido com extrema
divisão - enquanto uns amaram a ousadia da Rainha do Pop em fazer um material
tão estranho para o cenário mainstream, outros detestaram seu conteúdo pesado,
provocativo e, para uns, ofensivo (a faixa-título, por exemplo, foi eleita pela
revista "Blender" a 10ª pior música de todos os tempos).
Madonna então precisava reinventar sua imagem,
coisa que ela sempre se mostrou especialista - depois de ser massacrada com o
"Erotica", sendo apontada
como morta na carreira, ela vai lá e ganha o amor da crítica primeiramente com
o doce "Bedtime Stories" e
depois, a cartada final, com o premiadíssimo "Ray of Light". Jogando toda a pegada experimental do "American Life", a eterna Material
Girl volta ao passado, mais precisamente na década de 80, para construir um
álbum que viria a colocar seu nome no topo do mundo novamente. Estamos falando,
lógico, do "Confessions on a Dance
Floor", lançado em 2005.
Construído genialmente como um enorme set de DJ -
as músicas não possuem fim, são todas instrumentalmente ligadas, sem cortes e
intervalos - onde a diva controla as emoções num jogo decrescente de melodia,
as músicas foram postas da mais animada até a mais pesada, temos que tentar
sentar para analisar todas as músicas agora, o que é quase impossível, pois
ficar parado com esse álbum é quase heresia. Mas vamos lá.
1. HUNG UP
"Time goes by so slowly...". Contando um caso
pessoal, certa vez estava eu numa festa quando essa música começa a
tocar. Imediatamente solto "Meu deus, Hung Up!!!11!1" e um amigo, que
não é ligado em música pop, pergunta "Que música é essa?" e eu
respondo "Deixa ela começar que tu vai lembrar". Foi só a melodia
crescer e o sample de "Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After
Midnight)" do ABBA começar a derrubar todo mundo que ele falou "Essa
música é vida!". Além do sample, efeitos sonoros de relógio regem esse
hino que é um marco na carreira da cantora, tanto pela sua grandiosidade quanto
por ser sua primeira música lançada digitalmente no iTunes. Resultado? Entrou
para o Guinness Book como a canção com mais #1s no mundo na época (41
países), um feito inimaginável no engatinhar da era digital. A faixa vendeu até
hoje a p e n a s nove milhões de cópias. Tá?
2. GET TOGETHER
"Eu procurei minha vida toda para encontrar o segredo, e tudo que
fiz foi abrir meus olhos. Baby, nós podemos fazer, nós podemos fazer isso dar
certo". Eita. "Get Together" é o terceiro single do
"Confessions" e é uma verdadeira viagem de sintetizadores
onde, com vocais secos pelos efeitos sonoros, Madonna canta sobre amor de forma
genialmente pop. Indicado ao Grammy de "Melhor Gravação Dance", não
há um segundo de "Get Together" que esteja fora do lugar, numa faixa
que é digna do posto de "obra-prima", mesmo não tendo o desempenho comercial
merecido - só para reforçar de que não, uma faixa NÃO precisa ser hit para ser
"boa". Nem todos os #1 do mundo fariam jus à essa canção. "Nós podemos ficar juntos? Eu realmente quero estar com você. Venha
conferir comigo, espero que você sinta a mesma coisa".
3. SORRY
"Je suis désolée. Lo siento. Ik ben droevig. Sono spiacente.
Perdóname". Existe forma mais genial do que começar uma música
que se chama "Sorry" pedindo perdão em cinco línguas diferentes?
Existe. É jogar a melodia lá em baixo logo após isso e ir crescendo como se não
houvesse amanhã até cair no refrão destruidor na mais elevada potência.
"Sorry" é um grande desabafo cheio de sinceridades onde Madonna joga
na cara do (ex) amado tudo o que ele fez de errado. "Você não é nem metade do homem que você acredita ser. Fique com as
suas palavras porque você foi longe demais", canta ela de forma
debochada como se apontasse o dedo da cara do outro (quem nunca?).
Poderosíssimo, o segundo single do álbum é mais um hino que inicia a transição
do lirismo proposto pelo todo ao começar a tirar o pé do amor à primeira vista
de "Get Together", ainda que o instrumental seja para rolar no chão
da balada. "Gomen nasai. Mujhe maph kardo. Przepraszam.
Slicha. Forgive me. Eu já ouvi tudo isso antes".
4. FUTURE LOVERS
Madonna abre "Future Lovers" fazendo um
convite. "Vou te falar de amor. Vamos esquecer sua vida,
esquecer seus problemas, política, contas e empréstimos. Venha comigo".
Nós aceitamos e caímos com tudo na faixa, que de forma futurista trata de um
amor transcendente ("Conecte-se com o céu, futuros
amantes viajam para lá como uma missão"). Usada como música de
abertura da "Confessions Tour", num mash-up com "I Feel
Love" da Donna Summers onde a cantora aparece dentro de um globo de
discoteca gigante (!), "Future Lovers" é carregadíssima de
sintetizadores, efeitos, batidas e acordes elétricos.
5. I LOVE NEW YORK
Apesar de liricamente soar deslocada no todo,
"I Love New York" não é uma peça descartável da tracklist do álbum
por simplesmente ser divertidíssima. Flertando com o rock, a canção é uma
declaração de amor da cantora pela cidade, onde segundo ela "outros lugares sempre me deixam triste; nenhuma outra cidade
jamais me deixou alegre exceto Nova Iorque". Simples, porém
eficiente, possui um sample que nasceu para ser usado no futuro e uma ponte
crescente mega empolgante: "Se você não pode suportar o
calor, saia do meu caminho". O solo do final é maravilhoso.
6. LET IT WILL BE
Iniciada com violinos para se ouvir de joelhos,
"Let It Will Be" é o lado sujo da fama. "Agora eu posso te falar sobre sucesso, sobre fama, sobre a
ascensão e a queda de todas as estrelas no céu. Isso não te faz rir?",
numa claríssima indireta de Madonna para o cenário pop que amou vê-la
"fracassando" com seu último álbum, numa cultura em que se espera
sempre o melhor e o pior de todos que ali estão dando a cara para bater. O
problema é que a cara da Rainha já está mais que calejada ("Apenas veja me incendiar. Você não vai deixar pra lá?").
7. FORBBIDEN LOVE
Quando a tracklist do "Confessions" foi
divulgada e vimos "Forbbiden Love" no meio já achamos que Madonna
ressuscitaria a faixa de mesmo nome do "Bedtime Stories", mas não,
são completamente diferentes. Sobre isso ela conta: "Eu fiz tudo isso
de propósito. Quer dizer, se eu vou plagiar alguém, esse alguém poderia muito
bem ser eu, certo? Eu sinto que eu ganhei o direito de me rasgar fora. 'O
talentoso empresa, o gênio rouba'". Tá bom pra você? A faixa retrata um
amor proibido (sério, It?) de um garoto e uma garota, porém o teor é facilmente
aplicado para todas as orientações sexuais, algo visto na performance da música
durante a "Confessions Tour", com dois dançarinos de mãos dadas (e
símbolos religiosos opostos pintados no corpo). "Sempre destinado a estar juntos. Preservaremos nosso destino
eternamente". Sutil, delicada e apaixonante.
8. JUMP
O
quarto e último single do álbum é um hino de legitimação própria e, ao mesmo
tempo, um tributo de Madonna ao Pet Shop Boys. Cantando no mais baixo vocal do
álbum, "Jump" trata da melhor forma de remoçar sua vida depois do
término de um relacionamento: pulando. Madonna pega suas coisas e vai construir
seu caminho sozinha sem medo de saltar pra vida. Com versos lentos e sinuosos,
é impossível resistir à sedução que a cantora lentamente nos joga, indo ao
refrão com a gente na palma da mão. "Não olhe para trás, baby,
apenas pegue minha mão e prepare-se para pular". Pulemos.
9. HOW HIGH
Referenciando a si própria, porque não há ninguém
mais incrível que ela mesma né non?, "How High" traz os títulos
"Nobody's Perfect" e "I Deserve It" em "Was it all worth it? And how did I earn it? Nobody's perfect, I
guess I deserve it", músicas do "Music". Aqui Madonna
para para olhar para trás e ver tudo que já fez, numa música sincera e bem
pessoal: "É engraçado, eu passei toda minha vida
querendo que falassem de mim. Fiz de tudo, só para ver meu nome nos letreiros.
Valeu a pena? E como eu consegui?". Carregando um instrumental
mais pesado, "How High" tem inúmeras camadas, tanto na melodia quanto
nos vocais, criando um todo instigante a ser decifrado, sem, claro, te deixar
parado.
10. ISAAC
O mais próximo que o álbum chegou duma balada,
"Isaac" é uma faixa rítmica, com elementos arábicos que irritou
profundamente os israelitas na época do lançamento, mas Madonna se defendeu
afirmando que o título não se refere a Isaac Luria (fundador de uma das
ramificações mais importantes da cabala), e sim ao cantor Yitzhak Sinwani
que está na faixa ("Isaac" é a tradução inglesa de
"Yitzhak"), já que ela não tinha título para a canção. Cheia de
versos que até hoje não conseguimos cantar, "Isaac" é uma sensacional
experimentação de estilo de Madonna, que já havia flertado com o gênero em
álbuns anteriores, como o "Ray of Light". O refrão murmurado por ela
com os vocais islâmicos de Yitzhak é incrível, além do seu final
redentor: "O generoso realmente sabe o que será dado se
eles não pararem. Os portões do paraíso estão sempre abertos".
11. PUSH
Ainda com uma pegada rítmica iniciada em
"Isaac", "Push" traz tambores e sinos que se costuram com
os sintetizadores empurrando - literalmente - a faixa, com versos rápidos e
pulsantes e um refrão belíssimo: "Tudo o que eu faço, eu devo
tudo a você. Cada movimento que faço, cada passo que dou, tudo o que eu sei é
porque você me empurra". Tida como continuação de
"Boderline", um dos primeiros singles da carreira da cantora, lançado
láaaa no "Madonna", é também uma homenagem ao seu então
marido, Guy Ritchie. Termina de forma pesada, preparando terreno para a última
canção do álbum.
12. LIKE IT OR NOT
A mais pesada canção do álbum, "Like It Or
Not", é a faixa fatídica do álbum, que a faz ser o fechamento perfeito do
álbum. "Você pode me chamar de pecadora e pode me chamar de santa.
Celebre-me por quem eu sou, despreze-me por aquilo que não sou. Coloque-me
sobre um pedestal ou me jogue na lama. Paus e pedras quebrarão meus ossos, mas
seus rótulos nunca irão machucar". Gostando você ou não,
Madonna acaba o álbum dizendo "eu sou isso mesmo e você pode aceitar ou ir
embora". Recadinho para a mídia? Se colocarmos o álbum no repeat e
"Hung Up" vier logo após "Like It Or Not", o choque musical
é gigantesco, então como ela conseguiu transpor melodicamente o álbum dessa
forma?
RESUMINDO: De tempos em tempos acontece algo com artistas
que são grandiosos demais: o amor pela sua arte os cega. Madonna amou tanto seu "American
Life" que precisou de um choque de realidade para ver que aquilo não
era bem o que o público esperava. Não estamos discutindo a qualidade do álbum,
apenas que ela precisou de um estalo para opa! Eu preciso fazer algo diferente,
um patamar similar que Lady Gaga se encontra atualmente. É preciso conhecer um
pouco a dor do desmerecimento para ressurgir como uma fênix. Também é, de fato,
bem cruel termos que passar por isso, mas se o fruto desse momento turbulento
for algo como o "Confessions on a
Dance Floor", todos os poréns são justificados.
Respondendo à pergunta de "Like It Or Not", Madonna conseguiu fazer o álbum dono do
Grammy de "Melhor Álbum Dance"
ao aliar elementos perfeitos, que vão desde composição até produção. Vemos
muito fãs chamando vários álbuns de "Bíblia do Pop", como se só
aquele material fosse capaz de unir o todo em vez de ser um capítulo da grande
bíblia. Porém, se há algum álbum que possamos nomeá-lo assim de forma
imprudentemente certeira, é o "Confessions", a maior epopeia pop da
história, uma viagem imortal que conseguiu aliar o passado e o futuro
inimaginavelmente. Aqui Madonna não canta sobre os problemas do mundo, ela
canta sobre amor. E esse cantar veio de forma criativa, empolgante e
energética, uma injeção de adrenalina na sua discografia antológica que prova
que, depois de dez álbuns, Madonna continua sendo a rainha desse baile chamado
mundo pop.