segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Madonna é líder religioso onde nossa igreja é a pista de dança com o 'Confessions on a Dance Floor'

No começo do novo século o R&B parecia tomar de conta do mundo, principalmente dos EUA. Madonna, como sempre, nadava contra a correnteza, com seu auge no nono álbum de estúdio de sua carreira, "American Life", lançado em 2003. Bem experimental e conceitual, o álbum foi recebido com extrema divisão - enquanto uns amaram a ousadia da Rainha do Pop em fazer um material tão estranho para o cenário mainstream, outros detestaram seu conteúdo pesado, provocativo e, para uns, ofensivo (a faixa-título, por exemplo, foi eleita pela revista "Blender" a 10ª pior música de todos os tempos).

Madonna então precisava reinventar sua imagem, coisa que ela sempre se mostrou especialista - depois de ser massacrada com o "Erotica", sendo apontada como morta na carreira, ela vai lá e ganha o amor da crítica primeiramente com o doce "Bedtime Stories" e depois, a cartada final, com o premiadíssimo "Ray of Light". Jogando toda a pegada experimental do "American Life", a eterna Material Girl volta ao passado, mais precisamente na década de 80, para construir um álbum que viria a colocar seu nome no topo do mundo novamente. Estamos falando, lógico, do "Confessions on a Dance Floor", lançado em 2005.

Construído genialmente como um enorme set de DJ - as músicas não possuem fim, são todas instrumentalmente ligadas, sem cortes e intervalos - onde a diva controla as emoções num jogo decrescente de melodia, as músicas foram postas da mais animada até a mais pesada, temos que tentar sentar para analisar todas as músicas agora, o que é quase impossível, pois ficar parado com esse álbum é quase heresia. Mas vamos lá.


1. HUNG UP
"Time goes by so slowly...". Contando um caso pessoal, certa vez estava eu numa festa quando essa música começa a tocar. Imediatamente solto "Meu deus, Hung Up!!!11!1" e um amigo, que não é ligado em música pop, pergunta "Que música é essa?" e eu respondo "Deixa ela começar que tu vai lembrar". Foi só a melodia crescer e o sample de "Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight)" do ABBA começar a derrubar todo mundo que ele falou "Essa música é vida!". Além do sample, efeitos sonoros de relógio regem esse hino que é um marco na carreira da cantora, tanto pela sua grandiosidade quanto por ser sua primeira música lançada digitalmente no iTunes. Resultado? Entrou para o Guinness Book como a canção com mais #1s no mundo na época (41 países), um feito inimaginável no engatinhar da era digital. A faixa vendeu até hoje a p e n a s nove milhões de cópias. Tá?
2. GET TOGETHER
"Eu procurei minha vida toda para encontrar o segredo, e tudo que fiz foi abrir meus olhos. Baby, nós podemos fazer, nós podemos fazer isso dar certo". Eita. "Get Together" é o terceiro single do "Confessions" e é uma verdadeira viagem de sintetizadores onde, com vocais secos pelos efeitos sonoros, Madonna canta sobre amor de forma genialmente pop. Indicado ao Grammy de "Melhor Gravação Dance", não há um segundo de "Get Together" que esteja fora do lugar, numa faixa que é digna do posto de "obra-prima", mesmo não tendo o desempenho comercial merecido - só para reforçar de que não, uma faixa NÃO precisa ser hit para ser "boa". Nem todos os #1 do mundo fariam jus à essa canção. "Nós podemos ficar juntos? Eu realmente quero estar com você. Venha conferir comigo, espero que você sinta a mesma coisa".
3. SORRY
"Je suis désolée. Lo siento. Ik ben droevig. Sono spiacente. Perdóname". Existe forma mais genial do que começar uma música que se chama "Sorry" pedindo perdão em cinco línguas diferentes? Existe. É jogar a melodia lá em baixo logo após isso e ir crescendo como se não houvesse amanhã até cair no refrão destruidor na mais elevada potência. "Sorry" é um grande desabafo cheio de sinceridades onde Madonna joga na cara do (ex) amado tudo o que ele fez de errado. "Você não é nem metade do homem que você acredita ser. Fique com as suas palavras porque você foi longe demais", canta ela de forma debochada como se apontasse o dedo da cara do outro (quem nunca?). Poderosíssimo, o segundo single do álbum é mais um hino que inicia a transição do lirismo proposto pelo todo ao começar a tirar o pé do amor à primeira vista de "Get Together", ainda que o instrumental seja para rolar no chão da balada. "Gomen nasai. Mujhe maph kardo. Przepraszam. Slicha. Forgive me. Eu já ouvi tudo isso antes".
4. FUTURE LOVERS
Madonna abre "Future Lovers" fazendo um convite. "Vou te falar de amor. Vamos esquecer sua vida, esquecer seus problemas, política, contas e empréstimos. Venha comigo". Nós aceitamos e caímos com tudo na faixa, que de forma futurista trata de um amor transcendente ("Conecte-se com o céu, futuros amantes viajam para lá como uma missão"). Usada como música de abertura da "Confessions Tour", num mash-up com "I Feel Love" da Donna Summers onde a cantora aparece dentro de um globo de discoteca gigante (!), "Future Lovers" é carregadíssima de sintetizadores, efeitos, batidas e acordes elétricos.

5. I LOVE NEW YORK
Apesar de liricamente soar deslocada no todo, "I Love New York" não é uma peça descartável da tracklist do álbum por simplesmente ser divertidíssima. Flertando com o rock, a canção é uma declaração de amor da cantora pela cidade, onde segundo ela "outros lugares sempre me deixam triste; nenhuma outra cidade jamais me deixou alegre exceto Nova Iorque". Simples, porém eficiente, possui um sample que nasceu para ser usado no futuro e uma ponte crescente mega empolgante: "Se você não pode suportar o calor, saia do meu caminho". O solo do final é maravilhoso.

6. LET IT WILL BE
Iniciada com violinos para se ouvir de joelhos, "Let It Will Be" é o lado sujo da fama. "Agora eu posso te falar sobre sucesso, sobre fama, sobre a ascensão e a queda de todas as estrelas no céu. Isso não te faz rir?", numa claríssima indireta de Madonna para o cenário pop que amou vê-la "fracassando" com seu último álbum, numa cultura em que se espera sempre o melhor e o pior de todos que ali estão dando a cara para bater. O problema é que a cara da Rainha já está mais que calejada ("Apenas veja me incendiar. Você não vai deixar pra lá?"). 

7. FORBBIDEN LOVE
Quando a tracklist do "Confessions" foi divulgada e vimos "Forbbiden Love" no meio já achamos que Madonna ressuscitaria a faixa de mesmo nome do "Bedtime Stories", mas não, são completamente diferentes. Sobre isso ela conta: "Eu fiz tudo isso de propósito. Quer dizer, se eu vou plagiar alguém, esse alguém poderia muito bem ser eu, certo? Eu sinto que eu ganhei o direito de me rasgar fora. 'O talentoso empresa, o gênio rouba'". Tá bom pra você? A faixa retrata um amor proibido (sério, It?) de um garoto e uma garota, porém o teor é facilmente aplicado para todas as orientações sexuais, algo visto na performance da música durante a "Confessions Tour", com dois dançarinos de mãos dadas (e símbolos religiosos opostos pintados no corpo). "Sempre destinado a estar juntos. Preservaremos nosso destino eternamente". Sutil, delicada e apaixonante.

8. JUMP
O quarto e último single do álbum é um hino de legitimação própria e, ao mesmo tempo, um tributo de Madonna ao Pet Shop Boys. Cantando no mais baixo vocal do álbum, "Jump" trata da melhor forma de remoçar sua vida depois do término de um relacionamento: pulando. Madonna pega suas coisas e vai construir seu caminho sozinha sem medo de saltar pra vida. Com versos lentos e sinuosos, é impossível resistir à sedução que a cantora lentamente nos joga, indo ao refrão com a gente na palma da mão. "Não olhe para trás, baby, apenas pegue minha mão e prepare-se para pular". Pulemos.
9. HOW HIGH
Referenciando a si própria, porque não há ninguém mais incrível que ela mesma né non?, "How High" traz os títulos "Nobody's Perfect" e "I Deserve It" em "Was it all worth it? And how did I earn it? Nobody's perfect, I guess I deserve it", músicas do "Music". Aqui Madonna para para olhar para trás e ver tudo que já fez, numa música sincera e bem pessoal: "É engraçado, eu passei toda minha vida querendo que falassem de mim. Fiz de tudo, só para ver meu nome nos letreiros. Valeu a pena? E como eu consegui?". Carregando um instrumental mais pesado, "How High" tem inúmeras camadas, tanto na melodia quanto nos vocais, criando um todo instigante a ser decifrado, sem, claro, te deixar parado.

10. ISAAC
O mais próximo que o álbum chegou duma balada, "Isaac" é uma faixa rítmica, com elementos arábicos que irritou profundamente os israelitas na época do lançamento, mas Madonna se defendeu afirmando que o título não se refere a Isaac Luria (fundador de uma das ramificações mais importantes da cabala), e sim ao cantor Yitzhak Sinwani que está na faixa ("Isaac" é a tradução inglesa de "Yitzhak"), já que ela não tinha título para a canção. Cheia de versos que até hoje não conseguimos cantar, "Isaac" é uma sensacional experimentação de estilo de Madonna, que já havia flertado com o gênero em álbuns anteriores, como o "Ray of Light". O refrão murmurado por ela com os vocais islâmicos de Yitzhak é incrível, além do seu final redentor: "O generoso realmente sabe o que será dado se eles não pararem. Os portões do paraíso estão sempre abertos".

11. PUSH
Ainda com uma pegada rítmica iniciada em "Isaac", "Push" traz tambores e sinos que se costuram com os sintetizadores empurrando - literalmente - a faixa, com versos rápidos e pulsantes e um refrão belíssimo: "Tudo o que eu faço, eu devo tudo a você. Cada movimento que faço, cada passo que dou, tudo o que eu sei é porque você me empurra". Tida como continuação de "Boderline", um dos primeiros singles da carreira da cantora, lançado láaaa no "Madonna", é também uma homenagem ao seu então marido, Guy Ritchie. Termina de forma pesada, preparando terreno para a última canção do álbum.

12. LIKE IT OR NOT
A mais pesada canção do álbum, "Like It Or Not", é a faixa fatídica do álbum, que a faz ser o fechamento perfeito do álbum. "Você pode me chamar de pecadora e pode me chamar de santa. Celebre-me por quem eu sou, despreze-me por aquilo que não sou. Coloque-me sobre um pedestal ou me jogue na lama. Paus e pedras quebrarão meus ossos, mas seus rótulos nunca irão machucar". Gostando você ou não, Madonna acaba o álbum dizendo "eu sou isso mesmo e você pode aceitar ou ir embora". Recadinho para a mídia? Se colocarmos o álbum no repeat e "Hung Up" vier logo após "Like It Or Not", o choque musical é gigantesco, então como ela conseguiu transpor melodicamente o álbum dessa forma?
  


RESUMINDO: De tempos em tempos acontece algo com artistas que são grandiosos demais: o amor pela sua arte os cega. Madonna amou tanto seu "American Life" que precisou de um choque de realidade para ver que aquilo não era bem o que o público esperava. Não estamos discutindo a qualidade do álbum, apenas que ela precisou de um estalo para opa! Eu preciso fazer algo diferente, um patamar similar que Lady Gaga se encontra atualmente. É preciso conhecer um pouco a dor do desmerecimento para ressurgir como uma fênix. Também é, de fato, bem cruel termos que passar por isso, mas se o fruto desse momento turbulento for algo como o "Confessions on a Dance Floor", todos os poréns são justificados. 

Respondendo à pergunta de "Like It Or Not", Madonna conseguiu fazer o álbum dono do Grammy de "Melhor Álbum Dance" ao aliar elementos perfeitos, que vão desde composição até produção. Vemos muito fãs chamando vários álbuns de "Bíblia do Pop", como se só aquele material fosse capaz de unir o todo em vez de ser um capítulo da grande bíblia. Porém, se há algum álbum que possamos nomeá-lo assim de forma imprudentemente certeira, é o "Confessions", a maior epopeia pop da história, uma viagem imortal que conseguiu aliar o passado e o futuro inimaginavelmente. Aqui Madonna não canta sobre os problemas do mundo, ela canta sobre amor. E esse cantar veio de forma criativa, empolgante e energética, uma injeção de adrenalina na sua discografia antológica que prova que, depois de dez álbuns, Madonna continua sendo a rainha desse baile chamado mundo pop.