quarta-feira, 17 de julho de 2024

CRÍTICA | Planeta dos Macacos: O Reinado

Uma das leis não escritas do audiovisual determina que, se há uma trilogia de filmes uniformemente muito boa, é melhor não fazer uma quarta parte, pois ela provavelmente decepcionará. Planeta dos Macacos é, fico feliz em afirmar, uma exceção à regra, pois O Reinado é uma continuação – e também o começo de uma segunda trilogia, se tudo der certo – do mais alto gabarito que avança gerações no futuro, algo como umas três centenas de anos em relação aos longas do segundo reboot da franquia cinematográfica símia iniciado em 2011 para trabalhar de maneira exemplar o legado de Caesar, o libertador de sua espécie do jugo humano depois que uma pandemia, de um lado, dizima os homo sapiens sapiens e, de outro, evolui os símios.

Na verdade, o filme dirigido por Wes Ball que, assim como seu colega Rupert Wyatt, que comandou A Origem, tem um currículo assustadoramente fraco, faz algo que os três anteriores não podiam fazer justamente por eles terem compreensivelmente focados na construção de um novo e complexo universo: ele traz de volta o senso de aventura, de descoberta, da pura e clássica Jornada do Herói, mas sem deixar de construir em cima do que veio antes. O roteiro escrito por Josh Friedman (esse sim com um bom, ainda que curto e não sem falhas, currículo no cinema e na TV) é, fundamentalmente simples, com os membros do Clã das Águias, formado por chimpanzés altamente inteligentes que têm sua cultura gravitando ao redor das mencionadas aves de rapina, que são armas, instrumentos de caça e aspecto fundamental do rito de passagem da juventude para a maturidade, sendo sequestrado pelas forças do ambicioso bonobo Proximus Caesar (Kevin Durand), com o jovem e corajoso Noa (Owen Teague) partindo para salvá-lo.

No entanto, dentro dessa simplicidade, Friedman mostra uma capacidade invejável de construir e estabelecer personagens e situações com sequências organicamente inseridas na narrativa, como é o caso da grandiosa cena de abertura em que Noa, ao lado de seus melhores amigos, Soona (Lydia Peckham), que é também seu interesse amoroso, e o medroso, mas leal Anaya (Travis Jeffery), são mostrados em uma caçada perigosíssima por ovos de águia de forma que eles possam passar pela cerimônia chamada de Vínculo, em que eles, presumivelmente, passarão a ter conexão indelével com os pássaros de nascerão. Nesses minutos iniciais, o espectador aprende tudo o que é necessário aprender sobre Noa e seu clã de forma que seja possível criar empatia por eles e pela jornada à la Apocalypto que o jovem chimpanzé está prestes a empreender, ou seja, Friedman sabe que apenas jogar personagens na história sem maiores preocupações é receita para o fracasso e ele se preocupa com cada aspecto do microcosmo do Clã das Águias de forma a fazer justamente aquilo que Noa, Soona e Anaya querem fazer com as águias: criar um vínculo com o espectador.


Feito isso, a árdua jornada então começa, com Noa ganhando a companhia do sábio e solitário orangotango Raka (Peter Macon) e da humana em tese muda e involuída que Raka imediatamente batiza de Nova (Freya Allan), referenciando a Nova de Caesar (vivida por Amiah Miller em A Guerra), que, por vez, claro, é referência à personagem homônima famosamente vivida por Linda Harrison no clássico Planeta dos Macacos e em sua fraca continuação. Ao longo do turbulento caminho, o que roteiro faz é desvelar e devidamente trabalhar, aos poucos sem pressa, a verdadeira mensagem estrutural do longa que é uma abordagem inteligente e relevante sobre as figuras históricas, os mitos e as lendas nela baseados e como os interpretamos.

Caesar, o personagem símio de Andy Serkis, tão importante para a transformação da face do planeta Terra no universo dos filmes, inexiste para Noa e para seu clã. A figura histórica e até mesmo a lenda baseada nela se perderam e não alcançaram todas as gerações futuras pelos mais diversos fatores, seja pela falta de manutenção de arquivos, seja pelo alcance limitado da tradição oral. Raka, por seu turno, representa a tentativa de preservação da História – essa com H maiúsculo mesmo -, em seu esforço de não só manter uma coleção de livros que sequer sabe ler, mas cuja importância ele reconhece, como também em tentar disseminar a existência e os ensinamentos de Caesar, o que, claro, deslumbra Noa, especialmente quando ele começa a perceber que ele vive em um mundo que, não há tanto tempo assim, era bem diferente, algo que é muito bem representado na sequência dele sozinho e depois com Nova no observatório astronômico. Por fim, temos a lenda subvertida e transformada em instrumento de fortalecimento despótico por Proximus Caesar que não só faz do “símios juntos, forte” um mantra egoísta e autocrata, como usurpa o próprio nome do personagem histórico, mesmo que, no fundo, ele não acabe sendo lá muito diferente de Koba (Toby Kebbell), o grande vilão símio da trilogia iniciada em 2011.

É na convergência do conhecimento e na correção de rumos baseados em mentiras que O Reinado consegue estabelecer-se como uma Jornada do Herói de conteúdo, com força suficiente para servir de continuação que olha para o passado ao mesmo tempo em que pavimenta o futuro, mesmo que, para isso, acabe criando um final desnecessariamente aberto demais, que revela toda uma nova faceta desse futuro distópico, faceta essa que deveria ter permanecido apenas na suposição e na desconfiança – alguém tinha dúvida? – para ser efetivamente mostrada e desenvolvida em capítulo seguinte da saga. Afinal, Proximus Caesar até pode ser o vilão mais evidente, mas há outro, em constante destaque e bem mais perigoso… No entanto, se o filme escancara seu futuro, ele usa seu passado de maneira muito inteligente e não intrusiva, salpicando a narrativa de espertas referências à franquia como um todo, seja aos três filmes que o antecederam, seja o original de 1968, algo que podemos ver por elementos como a caçada aos humanos involuídos por Sylva (Eka Darville), o comandante gorila de Proximus Caesar, a escolha de um cenário costeiro para a cidade do monarca símio que faz a mímica visual da marcante reviravolta clássica, a semelhança do figurino de Raka com o do Dr. Zaius, uma certa boneca, e até mesmo a jornada de descoberta de Noa que é, fundamentalmente, a versão símia da que vemos George Taylor empreender.

A direção de Wes Ball é uma delícia, vale dizer. O diretor da trilogia Maze Runner (não disse que o currículo dele era fraco?) demonstra ter uma noção exemplar de tempo narrativo, com suas sequências jamais ocupando mais ou menos tempo do que o cirurgicamente necessário para transmitir a mensagem que ele deseja, e isso mesmo quando tudo o que ele deseja é lidar com momentos de tensão e de pancadaria, como na sequência em que Noa resgata Nova em meio a um milharal (ou algo semelhante) ou no ataque ao Clã das Águias por Sylva e seus minions. Mesmo quando ele introduz tardiamente personagens – e ele faz isso apenas uma vez, basicamente para apresentar o único ator de real renome do elenco -, tudo parece normal, um encaminhamento lógico para o desenvolvimento da história. Com isso, até mesmo o momento climático mais do que telegrafado basicamente desde os segundos iniciais do longa é eficiente e catártico, deixando o espectador com uma sensação de dever cumprido.

No lado da computação gráfica, deixa eu dizer de uma vez por todas o que eu já queria dizer há muito tempo: é para isso que o CGI realmente foi criado. Esse negócio de usar bits e bytes para poder fazer “mais facilmente” aquilo que poderia ser feito com efeitos práticos é coisa de produção preguiçosa que acha que fogo de mentira é melhor do que fogo real e que sangue digital é tão realista quanto o líquido, seja ele molho de tomate ou chocolate. Se os três filmes anteriores já elevaram o “jogo” da captura de performance a níveis impressionantes, com os filmes clássicos e também o de 2001, de Tim Burton (uma joia menosprezada, aliás), tendo elevado o jogo das próteses faciais, O Reinado dobra, triplica, quadruplica a meta e elimina de vez qualquer resquício de Vale da Estranheza no que se refere a personagens quase humanos que não são alienígenas azuis. O elenco e a equipe técnica, aqui, tem toda a latitude dramática que a atuação real mesclada com embelezamentos digitais pode alcançar e, com isso, os personagens símios são, mais do que em qualquer outro momento anterior, reais personagens que carregam completamente o filme nas costas, sem a ajuda de humanos. E o diretor sabe disso e usa isso a favor do longa, focando no périplo de Noa e transformando-o no grande destaque do filme, assim como ele consegue usar a constelação de coadjuvantes e os dois antagonistas primatas para dar relevo à Noa e à sua descoberta de um mundo muito mais amplo e complexo do que o que conhecia em sua aldeia. E o melhor é que, em meio ao digital, Ball não se acovardou diante do uso de efeitos práticos, tratando de cultivar a velha escola de efeitos, com figurinos símios absolutamente impecáveis engrandecendo o trabalho dos técnicos digitais.

Fica a pergunta: haveria espaço para o retorno às máscaras de símios? Como um defensor feroz dos efeitos práticos, minha reação imediata seria afirmar que sim, com certeza haveria e eu adoraria ver o que a tecnologia de duas décadas após o filme de Burton seria capaz de fazer. Mas a grande verdade é que não, não há e o público atual muito provavelmente teria problemas em acomodar-se a essa escolha sem fortes retoques digitais. Como não gosto de ser mais realista que o rei, resta-me então aplaudir efusivamente o “uso responsável” da computação gráfica, ou seja, o uso do CGI como instrumento para contar uma história e não como adereço inútil, explosivo e colorido na base do “porque sim” só para substituir a necessidade de se escrever algo relevante que, mesmo em meio à função de entreter, faz pensar.

Planeta dos Macacos: O Reinado é, sem sombra de dúvidas, uma exceção que confirma a regra das trilogias e Wes Ball e Josh Friedman estão de parabéns em conseguirem trabalhar temas importantes em uma história cativante que usa estrutura narrativa milenar e que constrói um futuro instigante a partir de um passado tão cuidadosamente estabelecido por seus antecessores. Se continuações são comercialmente inevitáveis – e elas são -, então que sejam do nível mostrado aqui. Que venham outras para continuar a história do apocalipse símio!

Obs: Todo mundo deveria sempre assistir aos créditos de filmes para prestigiar as equipes invisíveis de bastidores, mas serei benevolente e direi que não há cena pós-crédito em O Reinado. Por outro lado, há um “som pós-crédito” – posso estar errado, mas é apenas a segunda vez que isso é feito, a primeira tendo sido em Vingadores: Ultimato – que, mesmo não sendo nem de muito longe essencial, aponta para algo que provavelmente veremos em eventual continuação.


Planeta dos Macacos: O Reinado
(Kingdom of the Planet of the Apes – EUA, 2024)
Direção: Wes Ball
Roteiro: Josh Friedman
Elenco: Owen Teague, Freya Allan, Kevin Durand, Peter Macon, William H. Macy, Travis Jeffery, Lydia Peckham, Neil Sandilands, Eka Darville, Dichen Lachman, Ras-Samuel Weld A’abzgi, Sara Wiseman
Duração: 145 min.

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