Uma
das características mais importantes que temos, como humanos, é a capacidade de
empatia. Sem esta, somos indivíduos isolados dentro de nossas próprias mentes e
experiências – e até mesmo o amor será um sentimento de puro egoísmo, que
importará apenas em função de como nos faz sentir, não de como estabelece uma
ligação significativa com outra pessoa. Sem empatia, encaramos o diferente com
medo e, consequentemente, hostilidade, já que tememos o que desconhecemos e
odiamos experimentar temor. Sem empatia, o outro é apenas… “algo”. Um algo
cujos sentimentos, cujas dores, amores, vivências, sonhos, medos e esperanças
não importam, pois soam como conceitos apenas abstratos, distantes e
irrelevantes. A falta de empatia está na raiz da homofobia, da misoginia, do
racismo e do irmão destes, a sociopatia.
Um
indivíduo sem empatia é um indivíduo que enxerga o restante do mundo como algo
que só interessa como forma de viabilizar seus próprios interesses ou como
obstáculos a estes (e que, portanto, devem ser destruídos).
O
fato de ser homem cis hetero branco não deveria me impedir, contudo, de
entender que uma mulher trans homo negra é minha semelhante. Somos irmãos de
espécie. Quando choro por amor, sinto a dor que ela um dia já sentiu, sente ou
sentirá. Quando temo a morte, divido isto com a humanidade.
Sense8 é uma série construída por, com e sobre empatia. Usa o
verniz da ficção científica, o entretenimento da ação, o gancho do suspense e
mesmo a leveza da comédia, mas por baixo de todas estas roupagens há a alma de
artistas que querem levar o público a compreender que não apenas dividimos este
planeta, mas que somos os outros. O assassinato de um homossexual por amar
alguém que enxerga como pertencente ao mesmo gênero não é uma tragédia
individual, mas de toda a humanidade. Uma mulher torturada por um parceiro
abusivo é uma falha da espécie. Uma criança negra que cresce ciente de que tem
muito mais chance de ser morta pela polícia do que uma caucasiana é uma ferida
profunda e infeccionada em nossa evolução.
Em
2015, porém, temos deputados que constroem a carreira a partir do ódio que
alimentam e estimulam contra minorias. Temos líderes religiosos que, em vez de
pregarem o “amai ao próximo como ama a si mesmo”, preocupam-se apenas em
acumular dízimos enquanto vomitam intolerância e espalham a ignorância como um
vírus. Temos um congresso que não hesita em exigir investigação sobre o
“sarcasmo contra a Igreja” ao mesmo tempo em que realiza sessões de reza numa
casa legislativa que constitucionalmente deveria preservar a laicidade.
Mas
ainda mais trágico: num mundo que estabeleceu conexões imediatas entre
indivíduos espalhados por todo o planeta, vemos a mesma tecnologia que deveria
nos aproximar sendo empregada para promover o dissenso e discursos de ódio que
transformaram qualquer espaço de comentário na Internet em um esgoto no qual o
veneno flutua livremente.
Aliás,
não é difícil perceber como os irmãos Wachowski
conceberam a ligação telepática entre seus oitos personagens principais como um
eco da Internet e a perseguição que estes passam a sofrer como uma metáfora da
intolerância, do preconceito e da ignorância destinados aos que julgamos
diferentes. Não é à toa que Sense8 é
uma das produções mais preocupadas com a diversidade que atingiram o grande
público em um longo tempo: a galeria de indivíduos criada por seus realizadores
não traz apenas caucasianos, negros, asiáticos; traz também personagens com
diferentes identidades sexuais, étnicas e religiosas.
E
que doem ou sorriem pelos mesmos motivos.
Adotando
uma estrutura narrativa incrivelmente ambiciosa que se materializa
especialmente na montagem brilhante que certamente exigiu uma preparação
dificílima (mal consigo imaginar a complexidade do cronograma de filmagens), Sense8 traz conversas ambientadas
simultaneamente em países diferentes e nas quais um plano pode ocorrer à noite
em Seul e seu contraplano, durante o dia em Chicago – uma dinâmica que jamais
soa confusa graças à clareza com que o conceito é desenvolvido. Além disso, os
vários interlúdios musicais (e não só a trilha do projeto é belíssima, mas
também as canções incidentais selecionadas para sequências-chave) são
instrumentais ao ilustrarem a proximidade psicológica e emocional entre
indivíduos com vivências tão diversas – e, claro, é emocionante perceber como
todos atravessamos os mesmos dilemas por mais diferentes que nos julguemos.
Aqui, um queniano sofre pela doença da mãe; ali, uma sul-coreana ressente o
descaso do pai; acolá, uma indiana debate-se com relação à generosidade de um
homem que merecia seu amor, mas que, por essas coisas da vida, não consegue
despertá-lo. Em um instante, uma islandesa se droga para anestesiar perdas
insuportáveis; em outro, uma norte-americana transforma a rejeição sofrida pela
família, que não aceita sua identidade feminina, em combustível para seu
ativismo a fim de audar a comunidade LGBT que a acolheu.
Enquanto
desenvolve sua trama, expande seu conceito básico e investe no desenvolvimento
de seus personagens de forma excepcional, Sense8
também se mostra uma série com um otimismo do qual eu gostaria de compartilhar,
já que, entre outras coisas, parece acreditar que a dor experimentada por um
homem ao se ver sem seu parceiro é algo que encontrará a simpatia do público em
vez de despertar protestos de quem só aceita a validade do amor heteronormativo
– um otimismo que as mensagens de ódio recebidas pelo Netflix já se encarregaram de provar incorreto. Aliás, se
vivêssemos numa sociedade minimamente igualitária, uma atriz com a beleza, o
talento e o carisma de Jamie Clayton
chegaria ao fim de 2015 como a megaestrela que merece ser em vez de ser
obrigada a dar repetidas entrevistas sobre por que seria capaz de interpretar
qualquer tipo de personagem feminino se tivesse a oportunidade de fazê-lo.
Sense8 é, ao mesmo tempo, uma produção memorável e um
atestado de como ainda somos atrasados. Mas é, também, um pequeno milagre
apenas por existir e trazer personagens tão complexos, tão únicos, tão belos,
tão… humanos.
E
a falha de muitos em reconhecer a humanidade destes indivíduos é a maior
justificativa para que uma travesti se represente crucificada – pois, como o
personagem bíblico que interpreta, ela e todos que representa são vítimas
constantes da ignorância, da crueldade e do desprezo daqueles que não
hesitariam em eliminá-los se assim pudessem.
Mas
não podem. E Sense8 é uma das provas
de que, por mais destrutivos que sejam para evitar seu destino, os intolerantes
estão fadados apenas ao desprezo da História.