Três
fuscas azuis e um verde estão estacionados em frente a um casarão de três
andares, em Santa Teresa, numa terça-feira de agosto. Dois dos carros são de
músicos que ensaiam no estúdio instalado no porão do imóvel, onde o entra e sai
é grande. São meninos, a maioria, na faixa dos 20 e poucos anos, com cases de
instrumentos pendurados nas costas. Com uma camisa estampada com a bandeira de
Pernambuco, bermuda e chinelo de dedo, Chicão
— apelido de infância de Francisco Eller
— é um dos primeiros a aparecer por lá. Senta-se num sofá e se esconde atrás de
um violão herdado da mãe, a cantora Cássia
Eller, morta em 2001. Começa a tocar e a cantar baixinho.
Os
encontros da turma de Chico, como é
chamado entre os amigos, são descontraídos: não têm hora marcada e quórum não é
fator determinante. O ambiente combina com este tom informal. Letras de músicas
estão penduradas com pregadores de roupa num mural tal como num varal; “datas importantes músicos’’ intitulam
anotações numa lousa.
—
Se não for bagunçado, não dá certo. Os ensaios são com hora marcada, mas os
encontros, não. Costumo vir sozinho para ficar de bobeira e, se venho para
ensaiar, marco direitinho — afirma Chico, de 21 anos, resumindo o despojamento
que gosta de ter ao redor.
No
meio da conversa, ele segue até a cozinha, passa um café e volta com um copo
cheio. No meio do caminho, se atrapalha, derrama o líquido, mas consegue
agarrar o copo ainda no ar. Corre para pegar um pano, limpa tudo e continua a
entrevista. A cena revela outras características, além do tal despojamento:
Chico é tímido, espontâneo e tem um pouco de malandragem.
Ao
seu lado estão o produtor musical e violonista Rodrigo Garcia, de 47, espécie
de fiel escudeiro, e a cantora de voz potente Júlia Vargas, de 26. Entre maio e
julho, o trio ocupou um palco do Beco das Garrafas, em Copacabana, sempre às
quintas-feiras, numa temporada que começou discreta e terminou dando o que
falar e o levando à Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, onde se
apresentaram nos últimos dois domingos.
—
Temos um entrosamento imenso. É como se a Júlia fosse da banda do Chico e o
Chico da dela. Achamos um jeito de ter muitos shows num só — define Rodrigo,
amigo de Cássia a ponto de ter assistido ao parto de Chicão.
Júlia
emenda:
—
Uma coisa que une a gente é um amor imenso por muitas canções diferentes.
Praticamente não há ensaio. O show é uma mistura dos nossos trabalhos.
As
comparações entre Chico e a mãe tomaram corpo na leva das apresentações. O
sorriso fácil no palco, a timidez quando está fora dele, uma certa
irreverência, o timbre rascante da voz e a semelhança física instigaram quem
viu — o que o deixa bastante desconfortável.
—
Não lido bem com isso. Tem tanta gente boa fazendo música...
Chico
e o grupo 2x0 Vargem Alta, do qual faz parte, vão mostrar a música que estão
fazendo no dia 15 de outubro, no Circo Voador, quando lançam o primeiro CD
(MPB, jazz, blues). Os músicos Artur Pedrosa, Dudu Souto, Leandro D’Avila e
Pedro Fonseca (amigos do Centro Educacional Anísio Teixeira, o Ceat) dividem
com ele a autoria do projeto. O CD marca a estreia de Chico Chico — nome
artístico que adotou pela “sonoridade e simplicidade” — como compositor. Das 12
músicas, nove são dele.
—
Sempre escrevi. Depois, comecei a musicar — diz Chico, que se esquiva de
comentar suas letras. — Escrevo sobre o que vivo. Não vale a pena contar as
histórias. A música é o outro jeito de contar.
Um
rascunho das composições surgiu há dois anos quando Chico fez uma viagem de
bicicleta com o amigo Artur Lana (conhecido como Tui). Eles partiram de São
Mateus, no Espírito Santo, atravessaram a Bahia e chegaram a Aracaju, pedalando
pela areia, durante um mês e meio. Entre uma pausa e outra, Chicão fez
anotações. Uma das fotos tiradas pelo caminho ilustra a capa do CD.
—
Foi massa. Levamos nossas bicicletas do Rio, de avião, e demos nomes para elas:
Baianinha e Fiorentina — lembra Chico, que levou uma mochila nas costas e o
violão amarrado na bike.
Sobre as músicas do CD...
—
Muitas se perderam... Vamos parar por aqui, por favor — insiste Chico, com
timidez e fazendo certo charme.
Nas
letras, Chico — que no momento está solteiro — fala quase sempre dos encontros
e desencontros do amor. E mostra o que escreve para uma pessoa antes de todas
as outras: a mãe Maria Eugênia Martins, de 53, companheira de Cássia que ficou
com a guarda de Chicão quando a cantora morreu. Na época ele tinha 8 anos.
—
O Francisco é fofo, generoso. Me mostra tudo. E gosta que eu vá aos shows. Eu
vou ao máximo que posso — conta Eugênia. — É difícil acompanhar absolutamente
tudo. Vida de músico é agitada.
Os
dois moram juntos no mesmo apartamento em que viveram com Cássia, no Cosme
Velho. Eugênia não é o tipo de mãe que fica no pé, mas incentiva, entre outras
coisas, que Chico termine a faculdade de Geografia na UFF. Se pudesse escolher,
o filho seria professor. Mas, no fundo, sente orgulho por ele ter “puxado o
talento da mãe”.
—
Não é fácil essa curiosidade que todo mundo tem sobre a vida dele. O que irrita
o Francisco é trazer o tempo todo a história dele para a da mãe e não
considerar o seu trabalho. Mas é inevitável, todo filho de pessoa famosa passa
por isso. À medida que o trabalho dele for se consolidando isso vai perder a
importância — acredita.
O
diálogo entre os dois é aberto. Falam sobre relacionamentos, drogas e muita
música.
Francisco, ela conta, não é dos mais obedientes. Mas acha isso
saudável:
—
Ele não dá satisfação, como qualquer jovem da sua idade. E eu não sou muito
pentelha. Temos uma relação ótima, mas ele não é o tipo de cara que fica
obedecendo. É incapaz de brigar comigo, mas faz exatamente o que quer.
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Ela
garante que raramente precisa dar puxão de orelha. Mas pede para Francisco
pegar leve no cigarro e no “uisquinho”.
—
Ele diz que é para esquentar a garganta antes do show...
Desde
criança, Chicão brincava com instrumentos de Cássia Eller — continua brincando
até hoje. Em 2001, subiu ao palco do “Rock in Rio’’ para “tocar” percussão. A
emblemática cena está no documentário “Cássia”, de Paulo Henrique Fontenelle.
Durante os quatro anos de pesquisa, o diretor conta que ganhou de Francisco uma
pasta com recortes que ele tinha guardado da mãe.
—
O Chicão foi uma pessoa fundamental para o documentário acontecer, porque ele
tinha assistido ao filme “Loki”, que eu fiz, e tinha gostado — conta Paulo. —
Com o tempo, ele acompanhou algumas entrevistas, como a do Luiz Melodia. Mas no
dia que gravou a sua, quando terminou, tinha uma poça de suor no chão.
Francisco, a origem e a discrição
O
diretor lembra também a origem do nome Francisco, título de uma música de
Milton Nascimento:
—
A Cássia gravou essa música para o disco do (guitarrista) Nelson Faria e
enquanto cantava, o bebê se mexia na barriga. Então, disse que, se fosse
menino, chamaria Francisco. E fez a homenagem.
Chico
mantém a discrição sobre a família por parte do pai, o músico Otávio Fialho, o
Tavinho, que morreu num acidente de carro pouco antes de seu nascimento. Também
músico, Toni Costa, um dos melhores amigos de Tavinho, conta que acompanhou uma
reaproximação recente:
—
Não mantivemos contato, mas ele sabia que eu era próximo do pai. Ano passado,
fiz um show no Rio, ele entrou no camarim e me contou que tinha ido a São Paulo
para visitar a avó (Therezinha Fialho). A
pessoa que ensinou Chicão a tocar percussão foi Lan Lanh, com quem Cássia se
envolveu. Quando tinha entre 4 e 8 anos, nos bastidores dos shows, ele gostava
de ficar no meio dos instrumentos e batucava.
—
O Chicão era inquieto, hiperativo. Os instrumentos eram o parque de diversões
dele. Quando a Cássia faleceu, tinha um dia na semana que eu o buscava em casa
e entregava no seguinte.
Passávamos a tarde tocando caxixi, pandeiro,
bateria... — lembra Lan Lanh, que integra a banda Moinho e deu canja no show no
Beco das Garrafas. — Sou suspeita para falar, tenho orgulho de tia. Ele herdou
a genética da mãe, mas de uma forma muito genuína. O fato de ele ser autor
reforça sua identidade.
Dos
15 aos 18 anos, Chico estudou violão com o professor particular Paulo Corrêa:
—
É um menino muito dócil, que tem necessidade de se expressar através da música
e de ser autoral — observa Paulo. — Tinha um violão pretinho da Cássia que ele
adorava, mas estava com o tampo descolado. Indiquei uma pessoa para consertar,
mas percebi que ele não queria que o instrumento saísse de casa. Então, eu
mesmo dei um jeito.
Nessa
época, Chico formou com os amigos as bandas Zarapatéu e Uzoto, com as quais fez
suas primeiras apresentações. Hoje, além da 2x0 Vargem Alta, participa de um
grupo que não é bem uma banda, o Terezina 12. Os músicos dos dois projetos se
misturam.
—
O disco reúne muita gente, tem três baixistas, dois bateristas. Só que, para
poder levar isso em frente, consolidamos uma banda fixa. O Terezina 12 é também
um encontro de compositores — explica Chico Chico.
Terezina
é o nome da rua em Santa Teresa onde eles ensaiam. Também integram este elenco
João Mantuano (Jotinha), Pedro Romão, Marcos Padilha (Marcos Mesmo) e Pedro
Duarte, que “cedeu” o estúdio. Inicialmente, o subsolo da casa, que é de sua
família, era para funcionar como uma produtora, a Avera Filmes, mas acabou virando
dois em um.
As
histórias de como essa turma foi se juntando são curiosas. Marcos Mesmo e
Chicão tiveram os destinos traçados na na maternidade: o pai de Marcos foi
anestesista do parto de Cássia. Depois do parto, ele buscou o filho de 10 meses
em casa e voltou ao hospital para “apresentá-lo’’ ao recém-nascido.
—
Nos reencontramos na escolinha de futebol do Ceat, aos 6 anos — conta Marcos
Mesmo. (Sobre o “Mesmo”, explica: “Sou repetitivo.”)
Júlia
e Chico se conheceram por meio de Rodrigo Garcia, “padrinho da turma”.
—
Ela fez um teste para uma banda que eu tinha em São Pedro da Serra, a Nó Cego,
e passou a tocar com a gente. Nessa época, a galera do Chicão acampava no sítio
do Alex (Merlino, que morou com Cássia e Eugênia quando Chicão nasceu) e todo mundo
acabou se conhecendo — conta Rodrigo.
Algumas
músicas do CD foram gravadas neste cenário, com produção, literalmente,
caseira.
—
Gravamos num lugar que tem um silêncio enorme. Deixamos as portas do chalé
abertas, então algumas músicas têm som de grilo, de chuva. Deixamos essas
interferências aparentes — conta Rodrigo, que finalizou o trabalho no Rio.
O
CD sai pelo selo Porangareté, de Rodrigo, Chico e Eugênia. Os três cuidam dos
direitos autorais de Cássia (uma parte é da Universal) e, de um ano para cá,
decidiram “se aventurar”, como diz Eugênia, e apostar em novos nomes da MPB. O
DVD “Júlia Vargas e os Barnabés” e o disco de Carlos Posada são alguns dos
projetos. Os três estão envolvidos ainda na programação do “Rock in Rio’’, que
terá uma homenagem a Cássia, com a antiga banda dela no palco. Chico aprovou o
repertório e sugeriu o nome de Júlia entre as participações. Eugênia explica o
que será.
—
Desde que a Cássia morreu, sempre foi um sonho reunir a banda. Mas nunca
conseguimos conciliar agendas. Desta vez, a ideia partiu dos músicos. Vai ser
emocionante — prevê Eugênia, que só tem um lamento: — O Chico não quis
participar de jeito nenhum.