segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Filho de Cássia Eller, Chico Chico, lança primeiro CD com banda formada por amigos

Três fuscas azuis e um verde estão estacionados em frente a um casarão de três andares, em Santa Teresa, numa terça-feira de agosto. Dois dos carros são de músicos que ensaiam no estúdio instalado no porão do imóvel, onde o entra e sai é grande. São meninos, a maioria, na faixa dos 20 e poucos anos, com cases de instrumentos pendurados nas costas. Com uma camisa estampada com a bandeira de Pernambuco, bermuda e chinelo de dedo, Chicão — apelido de infância de Francisco Eller — é um dos primeiros a aparecer por lá. Senta-se num sofá e se esconde atrás de um violão herdado da mãe, a cantora Cássia Eller, morta em 2001. Começa a tocar e a cantar baixinho.

Os encontros da turma de Chico, como é chamado entre os amigos, são descontraídos: não têm hora marcada e quórum não é fator determinante. O ambiente combina com este tom informal. Letras de músicas estão penduradas com pregadores de roupa num mural tal como num varal; “datas importantes músicos’’ intitulam anotações numa lousa.

— Se não for bagunçado, não dá certo. Os ensaios são com hora marcada, mas os encontros, não. Costumo vir sozinho para ficar de bobeira e, se venho para ensaiar, marco direitinho — afirma Chico, de 21 anos, resumindo o despojamento que gosta de ter ao redor.

No meio da conversa, ele segue até a cozinha, passa um café e volta com um copo cheio. No meio do caminho, se atrapalha, derrama o líquido, mas consegue agarrar o copo ainda no ar. Corre para pegar um pano, limpa tudo e continua a entrevista. A cena revela outras características, além do tal despojamento: Chico é tímido, espontâneo e tem um pouco de malandragem.

Ao seu lado estão o produtor musical e violonista Rodrigo Garcia, de 47, espécie de fiel escudeiro, e a cantora de voz potente Júlia Vargas, de 26. Entre maio e julho, o trio ocupou um palco do Beco das Garrafas, em Copacabana, sempre às quintas-feiras, numa temporada que começou discreta e terminou dando o que falar e o levando à Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, onde se apresentaram nos últimos dois domingos.

— Temos um entrosamento imenso. É como se a Júlia fosse da banda do Chico e o Chico da dela. Achamos um jeito de ter muitos shows num só — define Rodrigo, amigo de Cássia a ponto de ter assistido ao parto de Chicão.

Júlia emenda:

— Uma coisa que une a gente é um amor imenso por muitas canções diferentes. Praticamente não há ensaio. O show é uma mistura dos nossos trabalhos.

As comparações entre Chico e a mãe tomaram corpo na leva das apresentações. O sorriso fácil no palco, a timidez quando está fora dele, uma certa irreverência, o timbre rascante da voz e a semelhança física instigaram quem viu — o que o deixa bastante desconfortável.

— Não lido bem com isso. Tem tanta gente boa fazendo música...

Chico e o grupo 2x0 Vargem Alta, do qual faz parte, vão mostrar a música que estão fazendo no dia 15 de outubro, no Circo Voador, quando lançam o primeiro CD (MPB, jazz, blues). Os músicos Artur Pedrosa, Dudu Souto, Leandro D’Avila e Pedro Fonseca (amigos do Centro Educacional Anísio Teixeira, o Ceat) dividem com ele a autoria do projeto. O CD marca a estreia de Chico Chico — nome artístico que adotou pela “sonoridade e simplicidade” — como compositor. Das 12 músicas, nove são dele.

— Sempre escrevi. Depois, comecei a musicar — diz Chico, que se esquiva de comentar suas letras. — Escrevo sobre o que vivo. Não vale a pena contar as histórias. A música é o outro jeito de contar.

Um rascunho das composições surgiu há dois anos quando Chico fez uma viagem de bicicleta com o amigo Artur Lana (conhecido como Tui). Eles partiram de São Mateus, no Espírito Santo, atravessaram a Bahia e chegaram a Aracaju, pedalando pela areia, durante um mês e meio. Entre uma pausa e outra, Chicão fez anotações. Uma das fotos tiradas pelo caminho ilustra a capa do CD.

— Foi massa. Levamos nossas bicicletas do Rio, de avião, e demos nomes para elas: Baianinha e Fiorentina — lembra Chico, que levou uma mochila nas costas e o violão amarrado na bike.

Sobre as músicas do CD...

— Muitas se perderam... Vamos parar por aqui, por favor — insiste Chico, com timidez e fazendo certo charme.

Nas letras, Chico — que no momento está solteiro — fala quase sempre dos encontros e desencontros do amor. E mostra o que escreve para uma pessoa antes de todas as outras: a mãe Maria Eugênia Martins, de 53, companheira de Cássia que ficou com a guarda de Chicão quando a cantora morreu. Na época ele tinha 8 anos.

— O Francisco é fofo, generoso. Me mostra tudo. E gosta que eu vá aos shows. Eu vou ao máximo que posso — conta Eugênia. — É difícil acompanhar absolutamente tudo. Vida de músico é agitada.

Os dois moram juntos no mesmo apartamento em que viveram com Cássia, no Cosme Velho. Eugênia não é o tipo de mãe que fica no pé, mas incentiva, entre outras coisas, que Chico termine a faculdade de Geografia na UFF. Se pudesse escolher, o filho seria professor. Mas, no fundo, sente orgulho por ele ter “puxado o talento da mãe”.

— Não é fácil essa curiosidade que todo mundo tem sobre a vida dele. O que irrita o Francisco é trazer o tempo todo a história dele para a da mãe e não considerar o seu trabalho. Mas é inevitável, todo filho de pessoa famosa passa por isso. À medida que o trabalho dele for se consolidando isso vai perder a importância — acredita.

O diálogo entre os dois é aberto. Falam sobre relacionamentos, drogas e muita música. 

Francisco, ela conta, não é dos mais obedientes. Mas acha isso saudável:

— Ele não dá satisfação, como qualquer jovem da sua idade. E eu não sou muito pentelha. Temos uma relação ótima, mas ele não é o tipo de cara que fica obedecendo. É incapaz de brigar comigo, mas faz exatamente o que quer.

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Ela garante que raramente precisa dar puxão de orelha. Mas pede para Francisco pegar leve no cigarro e no “uisquinho”.

— Ele diz que é para esquentar a garganta antes do show...

Desde criança, Chicão brincava com instrumentos de Cássia Eller — continua brincando até hoje. Em 2001, subiu ao palco do “Rock in Rio’’ para “tocar” percussão. A emblemática cena está no documentário “Cássia”, de Paulo Henrique Fontenelle. Durante os quatro anos de pesquisa, o diretor conta que ganhou de Francisco uma pasta com recortes que ele tinha guardado da mãe.

— O Chicão foi uma pessoa fundamental para o documentário acontecer, porque ele tinha assistido ao filme “Loki”, que eu fiz, e tinha gostado — conta Paulo. — Com o tempo, ele acompanhou algumas entrevistas, como a do Luiz Melodia. Mas no dia que gravou a sua, quando terminou, tinha uma poça de suor no chão.

Francisco, a origem e a discrição

O diretor lembra também a origem do nome Francisco, título de uma música de Milton Nascimento:

— A Cássia gravou essa música para o disco do (guitarrista) Nelson Faria e enquanto cantava, o bebê se mexia na barriga. Então, disse que, se fosse menino, chamaria Francisco. E fez a homenagem.

Chico mantém a discrição sobre a família por parte do pai, o músico Otávio Fialho, o Tavinho, que morreu num acidente de carro pouco antes de seu nascimento. Também músico, Toni Costa, um dos melhores amigos de Tavinho, conta que acompanhou uma reaproximação recente:

— Não mantivemos contato, mas ele sabia que eu era próximo do pai. Ano passado, fiz um show no Rio, ele entrou no camarim e me contou que tinha ido a São Paulo para visitar a avó (Therezinha Fialho). A pessoa que ensinou Chicão a tocar percussão foi Lan Lanh, com quem Cássia se envolveu. Quando tinha entre 4 e 8 anos, nos bastidores dos shows, ele gostava de ficar no meio dos instrumentos e batucava.

— O Chicão era inquieto, hiperativo. Os instrumentos eram o parque de diversões dele. Quando a Cássia faleceu, tinha um dia na semana que eu o buscava em casa e entregava no seguinte. 

Passávamos a tarde tocando caxixi, pandeiro, bateria... — lembra Lan Lanh, que integra a banda Moinho e deu canja no show no Beco das Garrafas. — Sou suspeita para falar, tenho orgulho de tia. Ele herdou a genética da mãe, mas de uma forma muito genuína. O fato de ele ser autor reforça sua identidade.

Dos 15 aos 18 anos, Chico estudou violão com o professor particular Paulo Corrêa:

— É um menino muito dócil, que tem necessidade de se expressar através da música e de ser autoral — observa Paulo. — Tinha um violão pretinho da Cássia que ele adorava, mas estava com o tampo descolado. Indiquei uma pessoa para consertar, mas percebi que ele não queria que o instrumento saísse de casa. Então, eu mesmo dei um jeito.

Nessa época, Chico formou com os amigos as bandas Zarapatéu e Uzoto, com as quais fez suas primeiras apresentações. Hoje, além da 2x0 Vargem Alta, participa de um grupo que não é bem uma banda, o Terezina 12. Os músicos dos dois projetos se misturam.

— O disco reúne muita gente, tem três baixistas, dois bateristas. Só que, para poder levar isso em frente, consolidamos uma banda fixa. O Terezina 12 é também um encontro de compositores — explica Chico Chico.

Terezina é o nome da rua em Santa Teresa onde eles ensaiam. Também integram este elenco João Mantuano (Jotinha), Pedro Romão, Marcos Padilha (Marcos Mesmo) e Pedro Duarte, que “cedeu” o estúdio. Inicialmente, o subsolo da casa, que é de sua família, era para funcionar como uma produtora, a Avera Filmes, mas acabou virando dois em um.

As histórias de como essa turma foi se juntando são curiosas. Marcos Mesmo e Chicão tiveram os destinos traçados na na maternidade: o pai de Marcos foi anestesista do parto de Cássia. Depois do parto, ele buscou o filho de 10 meses em casa e voltou ao hospital para “apresentá-lo’’ ao recém-nascido.
— Nos reencontramos na escolinha de futebol do Ceat, aos 6 anos — conta Marcos Mesmo. (Sobre o “Mesmo”, explica: “Sou repetitivo.”)

Júlia e Chico se conheceram por meio de Rodrigo Garcia, “padrinho da turma”.

— Ela fez um teste para uma banda que eu tinha em São Pedro da Serra, a Nó Cego, e passou a tocar com a gente. Nessa época, a galera do Chicão acampava no sítio do Alex (Merlino, que morou com Cássia e Eugênia quando Chicão nasceu) e todo mundo acabou se conhecendo — conta Rodrigo.

Algumas músicas do CD foram gravadas neste cenário, com produção, literalmente, caseira.

— Gravamos num lugar que tem um silêncio enorme. Deixamos as portas do chalé abertas, então algumas músicas têm som de grilo, de chuva. Deixamos essas interferências aparentes — conta Rodrigo, que finalizou o trabalho no Rio.

O CD sai pelo selo Porangareté, de Rodrigo, Chico e Eugênia. Os três cuidam dos direitos autorais de Cássia (uma parte é da Universal) e, de um ano para cá, decidiram “se aventurar”, como diz Eugênia, e apostar em novos nomes da MPB. O DVD “Júlia Vargas e os Barnabés” e o disco de Carlos Posada são alguns dos projetos. Os três estão envolvidos ainda na programação do “Rock in Rio’’, que terá uma homenagem a Cássia, com a antiga banda dela no palco. Chico aprovou o repertório e sugeriu o nome de Júlia entre as participações. Eugênia explica o que será.

— Desde que a Cássia morreu, sempre foi um sonho reunir a banda. Mas nunca conseguimos conciliar agendas. Desta vez, a ideia partiu dos músicos. Vai ser emocionante — prevê Eugênia, que só tem um lamento: — O Chico não quis participar de jeito nenhum.