Sobre o livro
“Com a publicação de Olhai os lírios do campo operou-se uma mudança considerável em minha vida. O romance obteve tão grande sucesso de livraria, que se esgotaram dele várias edições em poucos meses, deixando editores e escritor igualmente satisfeitos e perplexos. Tamanha foi a influência desse livro no espírito de certos leitores, que ele teve a força de arrastar consigo os romances que o autor publicara até então em tiragens modestas que levavam quase dois anos para se esgotarem.”
“Posso afirmar que só depois do aparecimento de Olhai os lírios do campo é que pude fazer profissão da literatura e jornalismo.”
O enredo
A estória de Olhai os lírios do campo trata da trajetória de Eugênio Pontes, jovem humilde da Porto Alegre dos anos 30 com aspirações de grandeza, que se esforça para se formar em medicina as custas dos sacrifícios dos pais e que decide dar um passo pragmático e polêmico: casar-se por interesse com uma refinada integrante da alta sociedade para ascender socialmente, ignorando os apelos do seu lado emotivo que apontam que sem dúvida alguma irá abdicar da companhia da mulher da sua vida. Decisão que ditará o rumo de sua vida e o colocará em debates constantes consigo mesmo, especialmente quando o passado retorna de forma abrupta e violenta o colocando em desesperadora agonia.
O que achei positivo
A linguagem que dá forma ao romance é um dos grandes trunfos do livro por conseguir em poucas linhas, com termos cirúrgicos e simples, retratar quadros vívidos de personagens e ambientes, qualidade que imprime dinâmica na narrativa mesmo quando se detêm em situações de cadência mais lenta, diálogos circunstanciais, avulsos, reflexões sobre aspectos secundários a trama, introduções de personagens e ambientes, resultando em uma leitura agradável de rápido consumo.
Ao menos em sua primeira metade.
A estrutura da narrativa é bem trabalhada e exitosa, o que merece destaque, porque, a meu ver, não se trata de uma execução simples, pois na primeira parte do livro o autor não segue uma narrativa linear. Èrico Veríssimo alterna, entre um capítulo e outro, relatos da infância, juventude e do presente de Eugênio, construindo um mosaico de memórias que traçam um panorama rico sobre a personalidade do mesmo e das principais figuras que viviam e vivem em seu entorno.
O esmiuçamento do lado psicológico do personagem, o seu modo de pensar, suas reflexões, seus medos, suas angústias, seus desejos é materializado no papel de forma muita competente. Não chega a se equiparar ao monumental trabalho de Hermann Hesse, no que concerne a esse aspecto, em seu Lobo da Estepe, mas o resultado nesse campo de Olhai os lírios do campo é exitoso.
Um dos motivos que faz com que a primeira parte do livro seja mais cativante, atrativa, é a situação de constante emergência na qual o personagem está inserido no tempo presente, uma corrida contra o tempo, que apesar de eu ter achado que esticou um pouquinho a mais do que deveria, embora também ache compreensível, porque a resolução só poderia ser apresentada no último instante para fazer sentido e escantear o momento presente por muito tempo poderia provocar esquecimentos de detalhes importantes para a trama, gerando confusão no leitor, inseriu eficientemente atmosfera de apreensão, de angústia crescente, que praticamente obriga o prosseguimento da leitura até a resolução dessa crise.
Outro ponto favorável em Olhai os lírios do campo são os momentos que exigem as virtudes de um olhar arguto e sensível que normalmente destaca os grandes escritores da multidão. O professor se destaca por saber transmitir conhecimentos, o médico se destaca por fazer diagnósticos precisos, o escritor de pedigree se destaca por desnudar a alma humana, revelando o que ela tem de melhor e pior, horrorizando e comovendo o público a ser entretido.
Há vários trechos que enternecem o leitor por fazê-lo se identificar, em maior ou menor grau, com a situação retratada, pois é uma narrativa sobre relacionamentos, de decisões certas e erradas que moldam uma vida que se vê diante de um impasse, em uma encruzilhada, uma narrativa de memórias insubstituíveis que inevitavelmente leva a reflexões sobre o que fazemos com as nossas vidas, com o nosso tempo.
A sensação ao terminar a leitura de Olhai os lírios do campo é a de se ter adquirido uma visão mais nítida sobre o que merece ser prioridade, um revigoramento de convicções sobre o que é mais edificante, uma mensagem otimista, mesmo que agridoce, que apesar de todos os entraves que a vida proporciona, a jornada vale a pena se trilhar os caminhos corretos.
Destaco o relacionamento de Eugênio com sua família, em especial com o seu pai, pois rende bons momentos de teor dramático, assim como a interação do protagonista com o seu par romântico, Olívia, descrita de forma bem humanizada, representando o núcleo feminino dignamente. A personagem demonstra não só jovialidade e candura de modos, o normal de se esperar pela função que desempenha dentro do enredo, mas inteligência, independência, determinação. Não é exagero dizer que dentro da dinâmica do casal ela é a personagem mais lúcida e forte. Se considerarmos que estamos falando de um romance de 1938, é mais um ponto positivo para o seu Érico.
O professor se destaca por saber transmitir conhecimentos, o médico se destaca por fazer diagnósticos precisos, o escritor de pedigree se destaca por desnudar a alma humana, revelando o que ela tem de melhor e pior, horrorizando e comovendo o público a ser entretido.
O que achei negativo
O que incomoda no livro em sua parte final é o fator imprevisibilidade. É difícil prever, passados mais de centenas de páginas, quando a estória se encerrará, o que está reservado as últimas páginas. Isso deveria ser positivo, e em muitas ocasiões o fator imprevisibilidade é mesmo, um enredo muito óbvio gera desinteresse, porém entendo que para cativar o leitor com esse recurso é necessário ficar evidente que um importante conflito, enigma, precisa ser resolvido.
Infelizmente não é o caso de Olhai os lírios do campo. Em determinado estágio da leitura, me vi pensando: “Por que essa história continua? Por que ainda faltam mais 40, 50 páginas para encerrar o volume? O personagem principal já optou em fazer uma grande decisão, já se adaptou a uma nova realidade, já resolveu as grandes pendências que tinha para resolver. O que falta?”.
Ao terminar a leitura, percebe-se que não faltava nada mesmo. É como um filme longo com 20, 30 minutos a mais do que o necessário. Boa parte da segunda parte é um conjunto de anedotas, de reflexões, umas boas, outras nem tanto, encaixadas de modo a preservar a coesão textual, mas que pouco acrescentam a obra como um todo, apenas reforçam pontos e argumentos já bem explorados em páginas passadas. Causa a impressão que Veríssimo não queria perder a oportunidade de tocar sobre alguns temas, principalmente envolvendo aspectos de governança a respeito da área da saúde, aproveitando a profissão de médico do protagonista para criar situações adequadas para discorrer sobre.
Talvez se estruturasse a trama principal de modo em que fosse possível e adequado inserir essas anedotas e reflexões no meio do volume, antes da estória se esgotar, a leitura dessas páginas seria menos penosa.
Alguns personagens secundários são chatos voluntárias e involuntariamente (eu não quero mais ler a palavra “megatério” por um bom tempo), outros, esquecíveis.
Fico a vontade de fazer as críticas, porque o próprio Veríssimo fez apontamentos parecidos no prefácio publicado pela Companhia Das Letras (as ilustrações de contracapa estão muito boas e o prefácio de Flavio Loureiro Chaves, igualmente), aliás, é uma característica curiosa e corajosa do autor, sempre analisou suas obras com olhar muito crítico, as vezes sendo muito ranzinza e impiedoso consigo mesmo, outras com justiça, como creio que seja o caso de Olhai os lírios do campo.
Conclusão
Realmente causa surpresa que esse livro tenha se tornado um estrondoso sucesso editorial, cada época com os seus mistérios e vícios, a obra não é um fracasso do início ao fim, uma longa piada involuntária encapada e bem ilustrada, longe disso, tem os seus méritos, tem a sua relevância, expõe habilidades de escrita e de sensibilidade refinada e profunda de um ótimo escritor, mas é irregular, insosso, monótono em alguns momentos, falta aquele “algo a mais” para justificar tamanho alarde. Claro que há vários exemplos de livros que geram grande alarde e se percebe que não há motivo para tanto ou quase nada, mas muitas deles são alavancados por uma campanha eficiente de marketing, o que não foi o caso de Olhai os lírios do campo. Como expresso pelo próprio escritor, ele era um romancista, até então, de tiragens modestas que levavam bastante tempo para serem esgotadas.
Já li outros livros de Érico Veríssimo, como Clarissa, Música ao Longe, Saga, e fiquei com melhor impressão deles.
Se já conhece o autor, é uma leitura que pode agregar sim. Caso não, é preferível que escolha outras obras de sua autoria, como os citados acima, e, claro, a série O Tempo e o Vento é a mais reverenciada pelos críticos, embora eu não possa dizer muito a respeito.
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