Mudança de concepção
Todos
conhecemos ao menos as mais básicas histórias da bíblia. No cinema, elas já
renderam verdadeiros clássicos Oscarizados, vide Os Dez Mandamentos (1956). Dentre todos os textos tidos como
sagrados, o mais famoso segue sendo a história de Jesus Cristo, o homem que se sacrificou na cruz pelos nossos
pecados e cujos ensinamentos sobre o amor, a irmandade e o bem, seguimos até
hoje. É fácil compreender que Jesus foi o socialista mais amado de todos os
tempos e que sua palavra nos dias de hoje vêm perdendo cada vez mais a força
para a intolerância, o individualismo e o falso sentimento de bondade que toma
conta um pouquinho de todos nós.
A
história de Jesus também já rendeu diversos filmes memoráveis ao longo da
existência do cinema, e os melhores são justamente os que se atrevem a sair do
convencional, a ousar, a mostrar um lado humano desta figura, suas falhas e
questionamentos. São justamente essas obras também que tendem a deixar em
fervor os fanáticos religiosos, que têm um único conceito santificado e imaculado
da figura bíblica. Não que tais filmes, vide A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, ou A Paixão
de Cristo (2004), de Mel Gibson,
queiram diminuir a importância de Jesus, ou desmerecer a fé depositada e
imutável nele, mas sim trazer sua história para um nível maior de veracidade,
tentando se aproximar do que verdadeiramente deve ter sido.
Chegando
nesta esteira, Maria Madalena é a
nova produção bíblica com um elenco e equipe técnica renomados, e uma proposta
verdadeiramente única. Escrito por duas mulheres, as roteiristas Helen Edmundson e Philippa Goslett (How to
Talk to Girls at Parties), a ideia por trás do longa é não apenas
apresentar estes eventos históricos sob a ótica da mulher que acompanhou tudo
de perto, como também modificar de uma vez por todas a imagem da mesma perante
o mundo. E pensar que demorou apenas algumas dezenas de séculos – taxada de
prostituta por volta do ano 500 por um Papa, foi oficialmente reconhecida pelo Vaticano em 2016.
Quem
topa a empreitada ao lado da dupla de escritoras é o jovem cineasta australiano
Garth Davis, cujo primeiro esforço
dirigindo longas rendeu seis indicações ao Oscar – com Lion: Uma Jornada para Casa. Davis retorna numa produção de
prestígio, está num aspecto mais intimista, apesar de se tratar de uma trama
grandiosa. Parte do brilho está na escolha do elenco de peso, que traz Rooney Mara (duas vezes indicada ao
Oscar), Joaquin Phoenix (três vezes
indicado ao Oscar), Chiwetel Ejiofor
(indicado ao Oscar) e Tahar Rahim
(um dos jovens atores franceses do momento).
No
filme, Maria Madalena (Rooney Mara)
é a primeira feminista de que se tem notícia, ao ir contra os ideais e planos
traçados para ela por sua família. Um deles é o casamento arranjado, já que
naquela época (diabos, foi assim até ontem – e em muitos lugares ainda é) este
era o propósito da mulher: se casar e respeitar seu marido. Bem, não para ela,
que tinha outras aspirações para sua vida. E se ainda é difícil ir contra o que
a sociedade espera de você atualmente, imagina numa época na qual não se tinha
precedentes de tal insurreição. Ao se desvencilhar dos laços considerados
nocivos por ela, Madalena busca achar sua verdadeira alma, seu espírito, e a
encontra com um grupo liderado pelo profeta Jesus, papel de seu namorado na
vida real, Joaquin Phoenix. Dentre
os seguidores, Pedro (Ejiofor) e Judas (Rahim).
As
atuações são vigorosas, e o quarteto principal interpreta como se buscasse
prêmio no Oscar. Phoenix talvez o mais chamativo, com uma performance metódica,
na qual Jesus usa uma voz arrastada e rouca, dominada por uma serenidade pouco
vista no ator em sua carreira. Ejiofor é explosão como o apóstolo questionador,
e Rahim traz doçura não imaginada para um obcecado Judas – que deseja ver os
milagres prometidos por seu messias a todo custo. Já Mara faz o que sabe muito
bem, o retrato de uma mulher fragilizada, mas imponente e incisiva – vide seus
trabalhos em filmes como Carol
(2015) e Una (2016).
Maria Madalena é uma das abordagens mais humanas e atuais da maior
história de todos os tempos. Apesar da relevância do tema, ao colocar Madalena
em primeiro plano, limpando sua imagem (antes tida meramente como prostituta),
o longa se distancia de certas polêmicas, como mostrar o relacionamento entre
Jesus e a protagonista (focado na obra de Scorsese, por exemplo, ou em O Código Da Vinci) como carnal, além de
espiritual, e não se desfazer por completo dos milagres de Cristo, assim
santificando sua imagem.
O
longa ainda marca o último trabalho do compositor Jóhann Jóhannsson (usual colaborador de Denis Villeneuve – de filmes como Sicario e A Chegada),
falecido no último dia 9 de fevereiro.
Maria Madalena foi exibido para a imprensa no dia 8 de março, o dia
internacional da mulher, e sinceramente não poderia ter sido em data melhor –
ou filme melhor para ocupar a vaga. Acima de tudo, a obra chega para desfazer
uma das maiores injustiças da humanidade, e numa era onde fala-se mais do que
nunca sobre a igualdade da mulher, a única apóstola, e a mais importante dentre
os seguidores de Jesus, demorou, mas finalmente foi reconhecida. E que assim
como esta, outras vidas femininas varridas para debaixo dos panos sejam
trazidas à tona.
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