domingo, 4 de novembro de 2018

Crítica | Maria Madalena – A mulher finalmente ganha lugar na bíblia

Mudança de concepção

Todos conhecemos ao menos as mais básicas histórias da bíblia. No cinema, elas já renderam verdadeiros clássicos Oscarizados, vide Os Dez Mandamentos (1956). Dentre todos os textos tidos como sagrados, o mais famoso segue sendo a história de Jesus Cristo, o homem que se sacrificou na cruz pelos nossos pecados e cujos ensinamentos sobre o amor, a irmandade e o bem, seguimos até hoje. É fácil compreender que Jesus foi o socialista mais amado de todos os tempos e que sua palavra nos dias de hoje vêm perdendo cada vez mais a força para a intolerância, o individualismo e o falso sentimento de bondade que toma conta um pouquinho de todos nós.

A história de Jesus também já rendeu diversos filmes memoráveis ao longo da existência do cinema, e os melhores são justamente os que se atrevem a sair do convencional, a ousar, a mostrar um lado humano desta figura, suas falhas e questionamentos. São justamente essas obras também que tendem a deixar em fervor os fanáticos religiosos, que têm um único conceito santificado e imaculado da figura bíblica. Não que tais filmes, vide A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, ou A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, queiram diminuir a importância de Jesus, ou desmerecer a fé depositada e imutável nele, mas sim trazer sua história para um nível maior de veracidade, tentando se aproximar do que verdadeiramente deve ter sido.
Chegando nesta esteira, Maria Madalena é a nova produção bíblica com um elenco e equipe técnica renomados, e uma proposta verdadeiramente única. Escrito por duas mulheres, as roteiristas Helen Edmundson e Philippa Goslett (How to Talk to Girls at Parties), a ideia por trás do longa é não apenas apresentar estes eventos históricos sob a ótica da mulher que acompanhou tudo de perto, como também modificar de uma vez por todas a imagem da mesma perante o mundo. E pensar que demorou apenas algumas dezenas de séculos – taxada de prostituta por volta do ano 500 por um Papa, foi oficialmente reconhecida pelo Vaticano em 2016.

Quem topa a empreitada ao lado da dupla de escritoras é o jovem cineasta australiano Garth Davis, cujo primeiro esforço dirigindo longas rendeu seis indicações ao Oscar – com Lion: Uma Jornada para Casa. Davis retorna numa produção de prestígio, está num aspecto mais intimista, apesar de se tratar de uma trama grandiosa. Parte do brilho está na escolha do elenco de peso, que traz Rooney Mara (duas vezes indicada ao Oscar), Joaquin Phoenix (três vezes indicado ao Oscar), Chiwetel Ejiofor (indicado ao Oscar) e Tahar Rahim (um dos jovens atores franceses do momento).

No filme, Maria Madalena (Rooney Mara) é a primeira feminista de que se tem notícia, ao ir contra os ideais e planos traçados para ela por sua família. Um deles é o casamento arranjado, já que naquela época (diabos, foi assim até ontem – e em muitos lugares ainda é) este era o propósito da mulher: se casar e respeitar seu marido. Bem, não para ela, que tinha outras aspirações para sua vida. E se ainda é difícil ir contra o que a sociedade espera de você atualmente, imagina numa época na qual não se tinha precedentes de tal insurreição. Ao se desvencilhar dos laços considerados nocivos por ela, Madalena busca achar sua verdadeira alma, seu espírito, e a encontra com um grupo liderado pelo profeta Jesus, papel de seu namorado na vida real, Joaquin Phoenix. Dentre os seguidores, Pedro (Ejiofor) e Judas (Rahim).
As atuações são vigorosas, e o quarteto principal interpreta como se buscasse prêmio no Oscar. Phoenix talvez o mais chamativo, com uma performance metódica, na qual Jesus usa uma voz arrastada e rouca, dominada por uma serenidade pouco vista no ator em sua carreira. Ejiofor é explosão como o apóstolo questionador, e Rahim traz doçura não imaginada para um obcecado Judas – que deseja ver os milagres prometidos por seu messias a todo custo. Já Mara faz o que sabe muito bem, o retrato de uma mulher fragilizada, mas imponente e incisiva – vide seus trabalhos em filmes como Carol (2015) e Una (2016).

Maria Madalena é uma das abordagens mais humanas e atuais da maior história de todos os tempos. Apesar da relevância do tema, ao colocar Madalena em primeiro plano, limpando sua imagem (antes tida meramente como prostituta), o longa se distancia de certas polêmicas, como mostrar o relacionamento entre Jesus e a protagonista (focado na obra de Scorsese, por exemplo, ou em O Código Da Vinci) como carnal, além de espiritual, e não se desfazer por completo dos milagres de Cristo, assim santificando sua imagem.

O longa ainda marca o último trabalho do compositor Jóhann Jóhannsson (usual colaborador de Denis Villeneuve – de filmes como Sicario e A Chegada), falecido no último dia 9 de fevereiro.


Maria Madalena foi exibido para a imprensa no dia 8 de março, o dia internacional da mulher, e sinceramente não poderia ter sido em data melhor – ou filme melhor para ocupar a vaga. Acima de tudo, a obra chega para desfazer uma das maiores injustiças da humanidade, e numa era onde fala-se mais do que nunca sobre a igualdade da mulher, a única apóstola, e a mais importante dentre os seguidores de Jesus, demorou, mas finalmente foi reconhecida. E que assim como esta, outras vidas femininas varridas para debaixo dos panos sejam trazidas à tona.

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