A
experiência de ouvir Spirit, décimo
quarto álbum do Depeche Mode (Dave Gahan, Martin Gore, Andy Fletcher)
é no mínimo fascinante. Entenda-se que a premissa do disco é a ausência de
espírito nas pessoas, no qual eles deixam claro não demonstrar o mínimo de
receio ao sentirem desprezo por isso.
É
de fato, fácil compactuar com a indignação e repúdio da banda para o cenário
atual. Embora sua produção tenha sido iniciada há cerca de um ano e meio, o
sucessor de Delta Machine, de 2013,
é o marco inicial de discos sobre essa era política. O trabalho não necessariamente é um álbum
político, e sim, sobre a humanidade apresentada num contexto sombrio. No
entanto esses dois temas acabam por convenientemente se colidirem.
A
abertura fica por conta de “Going
Backwards”, que a princípio soa facilmente simpática aos ouvidos, mas logo
impacta e impressiona. “Nós estamos retrocedendo
para a mentalidade de um homem das cavernas”, canta Dave Gahan. A sensação é desesperadora assim que a mente encontra
imagens da nossa realidade correspondentes a mensagem da canção. A audição do
disco promete não ser fácil. Os riffs
eufóricos e viscerais que concluem a faixa dão logo espaço para os
sintetizadores tocados por Andy Fletcher
em “Where’s The Revolution”, primeiro
single do trabalho.
“Quem está tomando suas decisões? Você ou sua
religião? Seu governo, seus países? Viciados patrióticos”. Na canção, é
evidenciado que a crítica é voltada para a crescente onda de populismo gerada
com o Brexit e a polêmica eleição de
Donald Trump como presidente do
Estados Unidos, após meses de campanha eleitoral controversa. “Onde está a revolução? Vamos lá, vocês estão
me deixando decepcionados”.
“Culpe a desinformação, líderes
equivocados/Hesitação apática, leitores sem instrução/Por qualquer razão que
nos encontremos nisso/ Todos somos acusados de traição/E não há ninguém para
ouvir/E oh, nós tivemos tanto tempo, como poderíamos cometer o pior crime?”
Trecho
de “The Worst Crime”, que novamente
evidencia o perigo da relação entre líderes carismáticos com discursos
extremistas e sua capacidade de sedução e conquista das massas. Depeche Mode.
A
indignação causa raiva, e por consequência desencadeia a ironia, sarcasmo e
deboche. Em uma das mais criativas e arriscadas aventuras do disco, “Scum”, o grupo aliado ao único produtor
do trabalho, James Ford, explora
novas combinações de sons eletrônicos com vocais que usam e abusam de vocoders.
O resultado é um single óbvio, contagiante, mas que diretamente debocha da
hipocrisia e superficialidade.
“Hey, escória. Hey, escória. O que você já
fez por alguém? O que você fará agora que a hora do julgamento chegou? Você se
ajoelha e grita, está procurando por alguém para testemunhar a sua bondade.
Você não consegue encontrar nem o seu filho. Puxe o gatilho!”
Trecho
de “Scum”, que apesar de seus versos
sombrios e diretos, é a canção mais dançante do disco.
O
viés político é o que mantém a coerência do álbum, porém abre margens para
temas um pouco mais leves e para a clássica abordagem romântica e sensual
característica da banda. Canções como “You
Move”, “Cover Me” e “So
Much Love” – sendo essa um single em potencial -, remetem a busca de
sentimentos que há algum tempo deixaram de existir. Esses momentos acabam por
se encaixar na narrativa do disco: existe uma faísca de esperança, mas com os
fatos na mesa é fácil de concluir que não há como ver uma solução para o
problema.
Em
contrapartida com a abordagem lírica – composta principalmente por Martin Gore -, a banda entrega toda a
sua alma como não visto há muitos anos com seus lançamentos anteriores – ainda
assim ótimos, mas sem toda a energia contagiante e envolvente apresentada nesse
disco. É um tanto irônico que a música
é feita com tanta alma e autenticidade ao mesmo tempo em que diretamente
explicita a ausência dessas individualidades nas pessoas.
Melhores
a cada ano que envelhecem e com sua integridade artística intacta e essência
dos anos 1980 à flor da pele, Depeche
Mode acerta com o irresistível e poderoso Spirit, que também pode servir como uma ferramenta para colocar
dentro de nós aquilo que está faltando.
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