terça-feira, 15 de maio de 2018

Resenha | Depeche Mode faz de “Spirit” seu melhor álbum em anos

A experiência de ouvir Spirit, décimo quarto álbum do Depeche Mode (Dave Gahan, Martin Gore, Andy Fletcher) é no mínimo fascinante. Entenda-se que a premissa do disco é a ausência de espírito nas pessoas, no qual eles deixam claro não demonstrar o mínimo de receio ao sentirem desprezo por isso.

É de fato, fácil compactuar com a indignação e repúdio da banda para o cenário atual. Embora sua produção tenha sido iniciada há cerca de um ano e meio, o sucessor de Delta Machine, de 2013, é o marco inicial de discos sobre essa era política.  O trabalho não necessariamente é um álbum político, e sim, sobre a humanidade apresentada num contexto sombrio. No entanto esses dois temas acabam por convenientemente se colidirem.


A abertura fica por conta de “Going Backwards”, que a princípio soa facilmente simpática aos ouvidos, mas logo impacta e impressiona. “Nós estamos retrocedendo para a mentalidade de um homem das cavernas”, canta Dave Gahan. A sensação é desesperadora assim que a mente encontra imagens da nossa realidade correspondentes a mensagem da canção. A audição do disco promete não ser fácil.  Os riffs eufóricos e viscerais que concluem a faixa dão logo espaço para os sintetizadores tocados por Andy Fletcher em “Where’s The Revolution”, primeiro single do trabalho.

Quem está tomando suas decisões? Você ou sua religião? Seu governo, seus países? Viciados patrióticos”. Na canção, é evidenciado que a crítica é voltada para a crescente onda de populismo gerada com o Brexit e a polêmica eleição de Donald Trump como presidente do Estados Unidos, após meses de campanha eleitoral controversa. “Onde está a revolução? Vamos lá, vocês estão me deixando decepcionados”.
Culpe a desinformação, líderes equivocados/Hesitação apática, leitores sem instrução/Por qualquer razão que nos encontremos nisso/ Todos somos acusados de traição/E não há ninguém para ouvir/E oh, nós tivemos tanto tempo, como poderíamos cometer o pior crime?
Trecho de “The Worst Crime”, que novamente evidencia o perigo da relação entre líderes carismáticos com discursos extremistas e sua capacidade de sedução e conquista das massas. Depeche Mode.

A indignação causa raiva, e por consequência desencadeia a ironia, sarcasmo e deboche. Em uma das mais criativas e arriscadas aventuras do disco, “Scum”, o grupo aliado ao único produtor do trabalho, James Ford, explora novas combinações de sons eletrônicos com vocais que usam e abusam de vocoders. O resultado é um single óbvio, contagiante, mas que diretamente debocha da hipocrisia e superficialidade.

Hey, escória. Hey, escória. O que você já fez por alguém? O que você fará agora que a hora do julgamento chegou? Você se ajoelha e grita, está procurando por alguém para testemunhar a sua bondade. Você não consegue encontrar nem o seu filho. Puxe o gatilho!

Trecho de “Scum”, que apesar de seus versos sombrios e diretos, é a canção mais dançante do disco.

O viés político é o que mantém a coerência do álbum, porém abre margens para temas um pouco mais leves e para a clássica abordagem romântica e sensual característica da banda. Canções como “You Move”, “Cover Me” e “So  Much Love” – sendo essa um single em potencial -, remetem a busca de sentimentos que há algum tempo deixaram de existir. Esses momentos acabam por se encaixar na narrativa do disco: existe uma faísca de esperança, mas com os fatos na mesa é fácil de concluir que não há como ver uma solução para o problema.

Em contrapartida com a abordagem lírica – composta principalmente por Martin Gore -, a banda entrega toda a sua alma como não visto há muitos anos com seus lançamentos anteriores – ainda assim ótimos, mas sem toda a energia contagiante e envolvente apresentada nesse disco.   É um tanto irônico que a música é feita com tanta alma e autenticidade ao mesmo tempo em que diretamente explicita a ausência dessas individualidades nas pessoas.


Melhores a cada ano que envelhecem e com sua integridade artística intacta e essência dos anos 1980 à flor da pele, Depeche Mode acerta com o irresistível e poderoso Spirit, que também pode servir como uma ferramenta para colocar dentro de nós aquilo que está faltando.

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