“Pinchas, quantos anos você tem?”. Steven Spielberg faz a pergunta para a
tela na parede, de onde a imagem em tamanho real de um idoso usando um cardigã
pisca e responde, com sotaque polonês, sem perder o ritmo. “Eu nasci em 1932, faça as contas”. “Ele me pediu para fazer as contas!”, ri
o cineasta. “Como você sobreviveu quando
tantos não conseguiram?” “Como eu
sobrevivi? Eu sobrevivi, acredito, porque a providência cuidava de mim”,
responde a tela.
O
bate-papo dura cinco minutos e, mesmo que a inteligência artificial por trás de
Pinchas lembre muito filmes antigos de Spielberg, o objetivo não era
entretenimento, mas educação. A tela sensível ao som traz uma biografia
interativa de Pinchas Gutter, um
sobrevivente polonês do Holocausto. A conversa era parte de uma turnê liderada
por Spielberg através da sede reformulada da Fundação Shoah, fundada em 1994 para coletar depoimentos de
sobreviventes do Holocausto.
Spielberg
expandiu a fundação no campus da Universidade da Califórnia, juntamente com sua
missão e foco público: combater o ódio, que para ele se tornou comum em todo o
mundo. “A presença do ódio tornou-se
garantida”, diz. “Não estamos fazendo
o suficiente para combatê-lo”.
A
conversa de vídeo pré-gravada com Pinchas é parte de uma série que convida os
visitantes a conhecerem 16 sobreviventes de genocídio. As respostas são dadas
com base em padrões de palavras específicos e mais de duas mil perguntas que variam
de visões sobre Deus a histórias
pessoais. A fundação segue arquivando histórias de vítimas do anti-semitismo, e
agora também coleta o que Spielberg chama de “testemunho vivo” das vítimas modernas do genocídio.
Por que expandir a missão da Fundação Shoah?
Eu acho que há um aumento mensurável
no anti-semitismo e, certamente, na xenofobia. A divisão racial é maior do que
eu imaginava que pudesse ser nesta era moderna. As pessoas estão expressando
mais os seus ódios, pois há muitos canais dando espaço para opiniões e demandas
razoáveis ou irracionais.
Pessoas nos mais altos postos de
comando também estão autorizando a expressão pública do ódio. Isso foi uma
grande mudança. Há todo tipo de esforço para pegar a verdade e subvertê-la para
uma ideologia distorcida. Vimos isso acontecer na Europa. Primeiro na França,
depois na Polônia. Nunca pensei que veria isso nos EUA como temos visto nos
últimos dois anos.
Muitos grupos alegam que suas vidas
são mais difíceis que as dos outros. Como podemos superar isso?
Podemos nos lamentar uns com os outros
sobre nossas dores, mas nunca transformar isso numa competição. Ser
marginalizado, ser discriminado, ouvir insultos racistas e antissemitas é algo
que une (a todos). Tudo que é feito contra os negros também está sendo feito
contra a comunidade judaica.
Tudo que é feito contra a comunidade
gay e lésbica, também está sendo feito contra as comunidades negra e judaica.
Ódio é ódio e o ressurgimento dele nos torna a todos responsáveis uns pelos
outros, faz com que tenhamos que defender uns aos outros. Ninguém mais pode ser
um espectador.
Como Hollywood pode combater isso?
Veja quantos filmes agora estão
contando histórias de mulheres. Há uma grande mudança centrada no gênero a
partir da queda de Harvey Weinstein. Contar histórias é fundamentalmente
humano. Mas a arte de ouvir é o que eu espero que a Fundação Shoah seja capaz
de inspirar.
Você está relançando “A lista de
Schindler” após 25 anos. Acredita que o filme ainda pode causar impacto?
No Festival de Tribeca acompahei pela
primeira vez em 25 anos um público assistindo a “Lista de Schindler”. A sala
estava cheia e a reação — eu me virei para Kate (Capshaw, sua esposa) e disse
“Oh meu Deus, eles ainda ouvem”. Com esse ciclo renovado de ódio, e iniciativas
como a Fundação Shoah, achei que poderia abrir uma conversa sobre como o
genocídio pode acontecer em qualquer lugar quando uma sociedade comum erra.
Charlottesville e o rescaldo tiveram um impacto enorme no desejo de reeditar o
filme
Se fizesse o filme hoje, o que
mudaria?
Não há nada que eu teria mudado,
absolutamente nada. Eu defendo esse filme, pois ele passou no teste do tempo.
O que fica com você 25 anos depois
sobre as filmagens na Polônia, onde a carnificina aconteceu?
Em quatro meses de filmagens em
Cracóvia, fiquei arrepiado o tempo inteiro. Era difícil simplesmente sair do
carro todas as manhãs e caminhar até o set. Eu queria usar os locais onde
Schindler ficou em Cracóvia, incluindo o gueto judeu, mesmo filmando muito
perto do campo de trabalho forçado de Płaszów. Nós filmamos na entrada de
Auschwitz. Quando o trem (no filme) deixava Auschwitz, era como se estivesse
entrando no campo da morte. Essa foi uma das noites mais frias que eu já
experimentei. Aquele silêncio triste entre a equipe — você podia ouvir um
alfinete cair.
A fundação decidiu incluir testemunhos
modernos sobre genocídio quando já tem mais de 51 mil registrados sobre o
antissemitismo. O video é o melhor professor?
Olha, somos todos contadores de histórias.
Qualquer pessoa viva é um contador de histórias, mesmo sem saber. Todo dia é
uma história. Maya Angelou disse: “A história, apesar de sua dor lancinante,
não pode ser abandonada, mas se for enfrentada com coragem, não precisa ser
vivida novamente.”
Qual sua memória mais antiga de ser
alguém diferente?
Minha avó ensinou inglês para
sobreviventes húngaros do Holocausto, em Cincinnati. Eu tinha dois ou três anos
e sentava com eles em volta da mesa. Foi assim que aprendi os números — no
braço de um sobrevivente de Auschwitz que me mostrou o número de seu antebraço.
Essa foi a minha "Vila Sésamo". Foi assim que aprendi a contar.
O que mais podemos fazer? O que você
pretende fazer?
Professores e pais precisam assumir a
responsabilidade pela aceitação do ódio na sociedade. Estou trabalhando com o
Discovery Channel e o cineasta vencedor do Oscar Alex Gibney em um estudo de
seis horas chamado "Why we hate" ("Por que odiamos?", em
tradução direta). Não planejo mais dramatizações do Holocausto. Estou colocando
toda a minha atenção no formato de documentário.