Gilberto F. Costa é professor efetivo do Departamento de Educação da UFRN e atualmente ministra a disciplina Fundamentos Sócio-filosóficos da Educação nos cursos de Química, Educação Física e Geografia.
É pesquisador na área de Humanas e tem especial interessa nas questões sociais, especialmente no que se refere aos problemas da educação brasileira.
Residente em Natal há 07 anos desenvolveu um enorme carinho por essa terra e a ela tem procurado dar sua contribuição ajudando a formar futuros profissionais.
Nesse ensaio ele revela um pouco de sua sensibilidade quando, captando uma cena vivida por duas pessoas de classes sociais bem distintas, consegue dá a mesma uma excelente conotação artística para mostrar o quanto ela pode ser significativa para um atento observador. Uma cena que pode passar despercebida por muitas pessoas, mas Gilberto consegue compará-la a um daqueles momentos que somente uma criação artística pode nos provocar.
‘A (in) visível fronteira entre realidade e arte’
Quando fui convidado por Dardinelhes a escrever para seu site, decidi, para minha própria surpresa, que escreveria sobre arte. Quanta audácia, pois poderei deixar decepcionados alguns artistas de plantão que, ao me ouvir falar assim, imaginam um texto convencional, dentro dos padrões mais recorrentes quando se trata do tema. Tentarei falar de arte sim, minimamente, mas do meu modo, buscando, ousadamente, estabelecer relações entre uma experiência vivida e as sensações/reflexões que essa experiência provocou em mim, usando a Arte como instrumento de comparação.
Ontem à noite, após ministrar minhas aulas na UFRN, volto para casa e no percurso, passei por uma das movimentadas passarelas para pedestres aqui em Natal. Eram aproximadamente 21h e, como de costume, dezenas de pessoas andavam apressadamente esbarroando-se umas às outras, provavelmente quase todas movidas pelo mesmo objetivo: voltar para casa. Encontrava-me nesse universo. Percebo que, geralmente, as pessoas fazem aquele percurso de um modo quase automático, já que muitas vezes a pressa e a rotina não lhes permitem olhar ao redor, a não ser quando, algumas vezes, se dão conta de que estão diante de um belo cenário urbano: a paisagem noturna de Natal.
Bom, o fato é que quando já chegava quase ao final da passarela, algo me chamou a atenção e por um momento parei para admirar a cena que se projetava à minha frente: em um dos cantos, sentado sob pedaços de papelões e, com outros dois pedaços protegendo seu corpo contra os ferros de segurança da passarela, ali se encontrava uma criança de aproximadamente 10 anos de idade; ela estava sozinha sem ninguém de sua família por perto, exposta ao frio e ao relento da noite. Sob suas pernas havia um pano sujo e certamente fedido, seu cabelo encontrava-se totalmente desgrenhado, no rosto o aspecto era de quem estava com fome e seu corpo mostrava claramente a necessidade de um banho. Ao lado da criança estava um jovem que, a meu ver, deveria ter uns 22 anos. Ele era um jovem branco e pela forma como se comportava e se vestia possivelmente tratava-se de alguém filho de pais de classe média. Acocorado para poder igualar-se à altura da criança que estava sentada, percebi que ele estava altamente concentrado em tentar compreender o que a criança falava, pois além de estar na condição que acima mencionei, ela apresentava notórios problemas de dicção. Naquele momento somente a voz da criança era ouvida. O rapaz assumia a condição de um atento e cuidadoso ouvinte. Ouvi-la e entendê-la parecia ser um exercício de extrema paciência e atenção.
É possível que o leitor aqui se pergunte: sim, mas o que há de extraordinário nisso?
Há algo de extraordinário nisso, sim! Naquele canto sujo e feio, existia um quadro que não estamos acostumados a ver. Para além do que a visão me permitia ver - um jovem e uma criança “conversando” - a cena me possibilitou vivenciar uma sensação como a que sentimos quando estamos diante de uma bela e rara produção artística. Eu me encontrava diante de uma cena real, dessas que se extraem do cotidiano, portanto dessas que emocionam, que mexem com nossas vaidades e egoísmos.
Ali eu estava vendo o contraste, o incomum, o diferente, os opostos; juntos num mesmo quadro e tendo como pano de fundo algo especialmente importante: a fusão, embora temporária e superficial, dos dois lados do abismo que os tornam tão socialmente distintos. Estava naquele canto, sujo e feio, um quadro em que os elementos que lhe davam vida não costumam coexistir daquela forma, sendo assim, não podem ser parte de uma mesma obra. A não ser na imaginação criativa dos artistas.
Mas o que isso tem a ver com Arte? Explico.
A Arte é uma forma refinada da expressão do pensamento que pode se manifestar através da dança, da poesia, da música, do teatro, da literatura, da pintura. Ela se sobressai como representação máxima dos desejos, dos sonhos, dos sentimentos, dos mistérios individuais, das necessidades coletivas, dos prazeres. Representa assim, um conjunto de elementos que o mundo concreto não consegue materializar. Dessa forma ela não é homogênea, não é padronizada e, portanto tem infinitas formas de ser representada. Como ela representa um mundo subjetivo, na maioria das vezes provoca forte impacto em quem a admira. E esse impacto, da mesma forma que a representação, não é igual de indivíduo para indivíduo.
Olhando numa outra perspectiva, a Arte tornou-se, equivocadamente, algo não apenas produzido, mas também consumido por um seleto grupo de afortunados e de intelectuais considerados capazes de perceber o que chamamos de sensibilidade estética, ou vivência artística. Essa sensibilidade é resultado da capacidade que a obra artística tem de fazer o expectador transcender para além do seu mundo objetivo. Seu status é o de ser - a arte - uma das poucas criações humanas que consegue, ao mesmo tempo, ser elo e ruptura. Nesse aspecto, mas não somente nesse, ela tende a tornar único o mundo real com o mundo subjetivo do admirador, rompendo, portanto, com a “normalidade” do vivido. O êxtase provocado na vivência do prazer artístico é o resultado desse encontro que somente o indivíduo é capaz de sentir.
Assim, a cena que presenciei é percebida aqui como semelhante a uma obra de arte. Expressão de um mundo não conhecido por nós. De um mundo que está apenas no discurso das muitas instituições que pregam igualdade e, no entanto só as agravam. De um mundo que está em bonitas imagens montadas e encontradas no Google, mas que nunca as vemos em nossas realidades. Cenas raras encontradas somente em mundos fictícios, como nas telas dos cinemas e nos livros, costumam chocar. Cenas de um mundo fictício quando encontradas na nossa realidade podem despertar a sensibilidade humana provocando o êxtase que, no mundo artístico, só é sentido pela vivência estética – momento do encontro de dois grandes mundos totalmente subjetivos, individuais e distintos, mas essencialmente necessários: o mundo do autor representado na obra e o mundo do admirador identificado na mesma obra.
Ousadamente acredito que a Arte, pela sensibilidade que desperta, pode ser, entre outros instrumentos, um dos mais especiais na construção de realidades onde os opostos e os contrários sejam juntos, protagonistas de quadros reais necessariamente mais belos, como o que visualizei naquela passarela. Quanto ao autor do quadro temos a opção de escolher entre o anonimato, nesse caso, inexistente soa melhor, ou então deixarmos que a sua criação fique por conta da nossa própria imaginação.
Por Gilberto F. Costa