Quem
olha mais atentamente sabe da convergência entre as carreiras de brasileira Pitty e Madonna. A própria Pitty
já se declarou fã da Madonna e fez
um programa inteiro como cover da cantora americana na MTV.
Enquanto
Pitty tem o rock na veia… bem, a Madonna também o tem. Mais rock’n’roll
que estar há décadas desafiando o conservadorismo e o status quo? Isso é muito
mais transgressor do que muitas bandas roqueiras que apareceram nesse tempo
orgulhosas de suas guitarras e torcendo o nariz para as batidas pop da Madonna.
Dizem
que ouvir o novo álbum de um artista que se acompanha há muito tempo é uma
experiência parecida, em séculos anteriores, com a de receber uma carta de um
amigo que não se vê há tempos. Primeiro, ficamos a par do que tem acontecido na
vida da pessoa.
Pitty lançou “Matriz”
no final de abril de 2019, e Madonna
lançou seu “Madame X” pouco mais de
um mês depois. Ao ouvir os novos álbuns, percebe-se que as ideias que passam
pela cabeça delas são as mesmas que passam pela cabeça de quem tem um mínimo de
sensibilidade: tentar respirar no meio da onda ultraconservadora que varre o
mundo ocidental nos últimos anos.
Assim,
com letras corajosas, as duas cantoras fizeram neste ano o álbum mais político
de suas respectivas carreiras. A palavra “democracia” aparece em “God Control” da Madonna, faixa sobre o controle e posse de armas de fogo;
“revolução” e “resistência” aparecem em “Noite
Inteira”, faixa mais pop já produzida pela Pitty que chegou às rádios em remix (que faria bonito na discoteca
do polêmico clipe de “God Control”).
Madonna escreveu “I Rise”
para tocar nas paradas do mundo, buscando inspiração para a letra em Jean Paul Sartre e sampleando parte do
discurso de Emma González,
sobrevivente de um massacre em escola americana.
O
sol do Caribe também brilha nos dois álbuns. A levada reggae faz a cama para “Future” (que Madonna gravou com o rapper Quavo),
para “Te Conecta”, da Pitty, e para “Sol Quadrado”. Nessa última, Pitty
reflete sobre os limites da liberdade na sociedade atual, reflexões que ecoam
em “Extreme Occident”.
Em
um momento que o Brasil abraça ideias xenófobas contra o Nordeste, Pitty veste as cores da Bahia, seu
estado natal, na capa do álbum e em vídeo promocional, e chama o Baiana System
para expressar o orgulho de suas origens nordestinas em “Roda”: “você pode até latir, você pode até bradar / você pode
coibir que eu não vou me abalar / só não mexa no meu jeito de dançar”.
No
refrão de “Killers Who Are Partying”,
Madonna adverte em português: “o
mundo é selvagem / o caminho é solitário”, e nas estrofes oferece sua voz a
grupos marginalizados quando esses sofrerem ataques (entre outros, ela será
pobre se os pobres forem humilhados, ela será gay se os gays forem queimados
–imagem que filma literalmente no clipe de “Dark
Ballet”, quando coloca Joana D’arc
sendo interpretada por Mikki Blanco,
artista negro, queer e HIV positivo, que aparece sendo queimado pela igreja
católica).
“Madame X” nasceu enquanto Madonna acompanhava o filho, jogador de
futebol em Lisboa. Isso fez com que tivesse contato com a cultura portuguesa,
bem como com influências de outros países que compartilham nossa língua, como o
próprio Brasil (percebo traços do “Transa”,
do baiano Caetano, além da poderosa presença da “Anitta” no CD), e também Cabo Verde, na África. Influência
escancarada em “Batuka”, gravado com
mulheres do grupo Batukadeiras.
Bahia,
o estado brasileiro mais africano, ecoa em todo álbum de Pitty, com ritmos de percussão africana, mas vem para a linha de
frente em “Redimir”, faixa produzida
por Pupilo. Inclusive, nessa faixa Pitty faz o que Madonna é genial professora: subverter símbolos católicos em
metáforas mundanas. “O chicote em minhas mãos / o chicote em minhas costas /
rasgando rios, o vergalhão / via-crucis autoimposta”, Pitty canta em Redimir.
Minhas
preferidas da Madonna são chamar
seus fluidos vaginais de água benta em “Holy
Water”, cantar “Live to Tell” em
uma cruz e, é claro, o clássico clipe da seminal música “Like a Prayer”, sobre se ajoelhar para rezar, ou para fazer sexo
oral.
Existem
congruências nos álbuns, sejam elas temáticas ou sonoras. Isso provavelmente se
dá por vivermos em um mundo globalizado em que as grandes questões que afligem Pitty são as mesmas que afligem Madonna – ou por ambas terem uma atenta
antena para a música que está sendo feita em todo o mundo.
Mas
penso que a mais importante é a impermanência, ou a permanente insatisfação. As
duas cantoras lançaram álbuns que são únicos dentro de suas respectivas
discografias. Madonna não aponta seu
barco para uma aposentadoria, ou para regravar sua excepcional coleção de
sucessos em formato acústico ou algo que o valha. Pelo contrário, ela sai de
sua mansão em Lisboa para tocar um dos maiores vespeiros do mundo, ao mostrar a
bandeira da Palestina em polêmica apresentação no Eurovision.
Pitty tampouco recorre a melodias e letras fáceis que lhe
garantiriam sucesso radiofônico mais imediato. Ambas gravam álbuns que tentam
lançar luz em momento que as trevas ganham força. Vida longa e produtiva a
elas.
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