As
primeiras notícias sobre a adaptação de The
Witcher — da obra do escritor
polonês Andrzej Sapkowski — para a Netflix surgiram em 2017, sendo
confirmadas pela empresa em maio daquele ano e com a contratação de Lauren Schmidt como showrunner da
série. A escolha não foi à toa. Schmidt já havia assinado a co-produção
executiva de séries como Demolidor, Os Defensores e The Umbrella Academy então não era alguém nova em produções de peso
e caráter heróico/sobrenatural. A diferença aqui é que a profissional assume a
cadeira principal de produtora executiva da Saga de Geralt de Rívia, e talvez o
seu principal desafio nesta temporada inicial foi tentar impedir um tsunami de
informações ao longo de oito episódios, mesmo que cada um deles tenha em média
uma hora de duração.
Sim,
vamos começar falando de ritmo e isso é quase um golpe do destino. Voltando
para 2017, antes do anúncio da série, a Netflix
já cogitava a adaptação da saga em um longa-metragem, e foi a
vice-presidente de produções internacionais da casa, Kelly Luegenbiehl, quem convenceu os chefões a não condensarem
tantos livros em um único filme, pois havia material demais para ser
trabalhado. Uma série era o mais indicado. Ora, não é preciso ser nenhum gênio
para entender que esse dilema inicial seguido da aceitação de produção do show
veio com alguma condição, e como espectadores sentimos isso no tempo, na
quantidade de informações (ou o tipo delas, mas falaremos sobre isso adiante) e
a maneira como se encadeiam no final da série. Como se a obrigação fosse a de
trazer diversas informações ao longo de arcos distintos para dar um caráter
épico já na 1ª Temporada e, dependendo do andar da carruagem, um recorte mais
escrupuloso seria feito numa possível renovação. Bem, ao menos a parte de
planejamento de produção e marketing deu certo. Cerca de um mês antes de
estrear, a série já tinha garantido a sua 2ª Temporada. Mas não sem um bom
preço.
Quando
o primeiro episódio começou, a minha primeira reação foi um estreitar de olhos
e inclinação da cabeça em um grau que indica “sei não, hein…“. Após terminar o oitavo capítulo, voltei para rever
essas primeiras cenas e ainda as acho um mau começo, agradecendo a Merlin que o
mesmo padrão não tenha sido a tônica do show, que sim, é muito bom. O roteiro
segue as pegadas de Geralt (Henry Cavill),
um bruxo caçador de monstros que procura ganhar dinheiro e, na medida do
possível, viver em paz ou ter apenas os seus tormentos pessoais para se
preocupar, algo que ele jamais consegue, obviamente. No decorrer dos episódios,
um arco envolvendo o seu destino, o destino de uma poderosa feiticeira chamada
Yennefer (Anya Chalotra) e o da
princesa Cirilla (Freya Allan) — que
também tem uma boa dose de mistérios e segredos ainda por descobrir — é
erguido. Como é de praxe em boas fantasias literárias e suas respectivas
adaptações, o cerne da questão envolve o amplo deslocamento dos personagens, um
amplo leque de criaturas e inimigos de ocasião e um contexto de Universo que
apesar das particularidades entre as cidades e reinos, possui uma tônica geral
para o recorte do momento. E como era de se esperar, a tônica aqui é a guerra.
Henry Cavill está incrível no papel do protagonista. Eu não tive
nenhum contato com o original, então não sei se essa construção do personagem
vem de lá ou é uma leitura do ator, mas tudo o que ele faz com o personagem
aqui funciona: a imposição de autoridade numa postura pacífica,
majoritariamente silenciosa e de voz sempre em tom médio para baixo, o que
exige relaxamento do ator para que uma colocação mais gutural da voz seja
feita; a exibição de um temperamento que transita entre alguns alinhamentos mas
que tem os pés na visão pragmática ou de exercício da justiça dependendo da
situação; e por fim, a excelente base de coreografia de lutas com espada que o
ator nos traz, tornando o drama mais interessante de se assistir, pois a magia,
ainda que existindo em muitos níveis aqui, não está colocada como a única saída
ou facilitador de situações (bom… há um pouco disso na batalha final, mas
convenhamos, é emocionante demais), afinal estamos em um Universo de reinos,
logo, a espada e outras armas ou modos de luta para além da magia são
necessárias pela simples contextualização da obra.
Os
diretores souberam aproveitar muito bem as paisagens na Hungria, Polônia e
Ilhas Canárias onde a temporada foi filmada. Existem inúmeras mudanças de
cenários (assim como de figurino e maquiagem, que são excelentes), todas muito
bem concebidas e tratadas com bons efeitos, assim como a execução de magia ao
longo da série inteira. Vertentes diferentes são apresentadas e, ao passo que
cada arco se desenvolve, o espectador tem a oportunidade de ver como os
personagens crescem e adicionam ainda mais truques à sua lista. O grande
problema disso é que no arco da Princesa Cirilla e, em parte, na própria
evolução de Geralt, esse aspecto de desenvolvimento se perde porque temos uma
linha temporal dividida entre passado e presente. Se este é um andamento vindo
da literatura, certamente não coube bem na adaptação. Para piorar, as mudanças
na fotografia e figurinos são mínimas e o andamento do plot em dois tempos não
é esclarecido desde o começo, o que confunde desnecessariamente o público ou
complica algo que poderia ser imensamente mais simples. É por conta dessa
divisão que muitos episódios funcionam mais como “monstro da vez” do que como
desenvolvimento de algo maior.
Particularmente
achei todo o arco de Ciri entre fraco e ruim, em temos de construção,
salvando-se aí os aspectos técnicos e a atuação de Freya Allan. O arco do bardo me chateou mais do que agradou, talvez
porque o roteiro insistiu demais no tema das gracinhas fora de hora (isso só
funciona bem, a longo prazo e com essa abordagem, na literatura) e fez com que
terminasse abruptamente, com um discurso meio fora de tom de Geralt para o
músico, infelizmente vindo depois da melhor jornada isolada da temporada, que
foi a caça ao dragão. Na outra ponta da régua temos uma boa apresentação e
desenvolvimento (mesmo escorregando no miolo) da Irmandade dos Magos, trazendo
questões de política e brigas internas que os tornam mais interessantes —
quando vistos em confronto com iguais — e a Irmandade em si ainda mais real,
complexa e com mais intrigas para serem trabalhadas. Do início ao fim o tema da
magia e das lutas cruas e violentas se mantém em alta e condizente com o
projeto (minhas favoritas são a luta de Geralt no mercado da primeira cidade —
uma das sequências de luta mais bem dirigidas da temporada — e a luta contra a
Striga; além, é claro da luta final entre os dois exércitos e os dois times de
magos) .
Embora
Geralt tenha seu desenvolvimento atrapalhado pela escolha de linha temporal
dupla (tomara que isso não volte na 2ª Temporada), a caminhada do personagem é
no geral bem arquitetada, sem contar que Cavill está (é) maravilhoso no papel.
Yennefer tem o segundo melhor arco deste ano, um dos mais bem explorados no
campo pessoal, sentimental, mágico e de crescimento da personagem como um todo,
mais até que o do próprio protagonista, além de ter a fascinante Anya Chalotra no papel, cuja beleza é
ainda mais chamativa com a maquiagem pesada, as lentes e o figurino escuro.
Meus
votos é que na próxima temporada, sem a necessidade de mostrar que tem um
Universo rico e cheio de possibilidades (ou seja, eliminando sequências que não
servem para nada, como aquela de Ciri na floresta protegida pelas mulheres) e
muitos casos isolados de “Geralt persegue
e mata o monstro“, o roteiro consiga fortalecer a linha central do programa
e também o nosso foco naquilo que realmente importa. Depois de uma boa
introdução como a desta temporada, creio que será possível sim. Assunto é o que
não falta. Que o Caos permita, pois.
The Witcher – 1ª Temporada (Polônia, EUA, 20 de dezembro de 2019)
Criadora: Lauren Schmidt
Direção: Alik Sakharov, Alex Garcia Lopez, Charlotte Brändström,
Marc Jobst
Roteiro: Lauren Schmidt, Jenny Klein, Beau DeMayo, Declan de
Barra, Sneha Koorse, Haily Hall, Mike Ostrowski (baseado na obra de Andrzej
Sapkowski)
Elenco: Henry Cavill, Freya Allan, Joey Batey, MyAnna Buring,
Tom Canton, Anya Chalotra, Eamon Farren, Björn Hlynur Haraldsson, Adam Levy,
Jodhi May, Lars Mikkelsen, Maciej Musial, Mimi Ndiweni, Royce Pierreson, Wilson
Radjou-Pujalte, Anna Shaffer, Amit Shah, Therica Wilson-Read, Judit Fekete
Duração: 8 episódios, com cerca de 60 min.